Nunca fui leitor precoce, no sentido de antecipar leituras
clássicas. Criança, li literatura infantil, pré-adolescente, infanto-juvenil,
na adolescência lia os best-sellers e
senti pela primeira vez a graça de possuir um livro, até então, pegava todos em
bibliotecas. Foi mágico. Lia obra clássicas esparsamente findando a
adolescência, nunca me obriguei leituras, acredito ter cada pessoa seu processo
próprio de amadurecimento enquanto leitora. Não se avexe.
Nos últimos dois, três anos sinto-me mais seguro para
compreender os clássicos, mas ainda não li grandes autores como James Joyce,
Cortázar, Virginia Woolf, Sylvia Plath, uma hora me aprumo. O que me importa é
me ouvir, acompanhar meu próprio tempo. Se tem expressão que detesto é leitura obrigatória. Desta maneira,
sobretudo respirando, li obras lindas no último ano. Preparei uma lista de sete
livros, somente em prosa, para compartilhar as referências. Para 2015, desejo
pisar com mais firmeza. Chão a gente tece.
Sete) Quero minha mãe,
Adélia Prado, 2005, Ed. Record, 77 páginas
Nunca tinha lido Adélia, só recebido recomendações. Comecei
pela prosa. Escolhi o livro aleatoriamente, me metendo em estantes de livraria.
Conta história de Olímpia, mulher de 60 anos que intui sua própria morte e, de
fato, descobre-se com câncer. O enredo cobre a intuição, descoberta, contar
para pessoas próximas, o círculo cotidiano, fé em Deus, lembranças e
referências da mãe, subjetividade e inconsciente da personagem também
narradora. O que particularmente me atrai na obra é como a autora entrega
apenas fragmentos da vida de sua protagonista dentro de uma linearidade. Não há
divisão por capítulos, os fragmentos são dispostos em trechos curtos, às vezes
um parágrafo por página. Com isso, Adélia abre nosso campo de percepção para os
silêncios, faltas e engasgos. Para o mínimo, como lhe é de praxe. Toda atenção
ao sutil silencioso.
Seis) Então você quer
ser escritor?, Miguel Sanches Neto, 2010, Ed. Record, 220 páginas
No ano passado, ganhei menção honrosa por um conto enviado a
um concurso literário promovido pelo Clesi, grupo de escritores/as
organizados/as em Ipatinga – MG. Não conhecia a cidade, fui sozinho receber o
prêmio. Na cerimônia de premiação, me dei conta de que eu tinha ido sem
confirmar presença, logo, não sabiam de mim ali. Ouvi falarem meu nome ao
microfone e justificarem minha ausência. A cerimônia acabou, não falei com
ninguém, fui embora sem receber pessoalmente o prêmio e ser notado. Escrever um
dia me mata de solidão. Achando tudo esquisito, fui ao shopping ao lado do auditório, entrei na livraria e encontrei este
título: Então você quer ser escritor?
Provocado o suficiente, comprei o livro, lembrando já ter lido resenha dele
numa revista. Poderia ser anedota, mas este foi o início da minha carreira literária
inexistente.
Então você quer ser
escritor? reúne contos enxutos na linguagem, mas profundos e sensíveis o
bastante para fazer levantar sobrancelhas, abraçar o livro, reler certos
contos, ter saudade da obra. Adoro
derramamento linguístico, quando bem realizado, mas a ausência de ornamentos
aqui não me impediu de gostar muito do que li. Miguel Sanches Neto, autor
contemporâneo paranaense, é uma das referências na nova geração da literatura
brasileira. O primeiro conto, Sangue,
é preciso, redondo, impecável, nada sobra, tira fôlego em apenas quatro
páginas. Mas meus contos preferidos são O
tamanho do mundo – história de dois irmãos que recebem a notícia da morte
do pai na escola e como a vida deles se desenrola a partir disso – e sobretudo Árvores submersas, história de um
organizador de antologias poéticas que pensa em lançar um livro com poemas de
um escritor desconhecido que lera há tempos. Vai atrás dele e o descobre numa
cidade de interior, casa sombria, trancado dentro do quarto, sem nenhuma possibilidade
de ver o mundo externo, morando apenas com a mulher, quem organiza o que
escreve, deixa comida na porta do quarto e imprime seus livros. A maneira como
Miguel constrói a metáfora que dá título ao conto foi um dos maiores
aprendizados que tive sobre como trabalhar um texto, das coisas mais belas que
li no último ano.
Cinco) A céu aberto,
João Gilberto Noll, 1996, Ed. Companhia das Letras, 164 páginas
Contemporâneos, pós-modernos, tateamos nosso próprio tempo. Somos
fragmentos, cacos, fluidos, trânsitos, não-identidades, inclusive
literariamente. A céu aberto talvez
seja o registro mais fiel ao seu tempo que eu tenha lido até então. Narrativa
sem qualquer subdivisão interna (capítulos, partes), flui como sonhos, uma ação
levando à outra, abstração levando à seguinte, sem qualquer interrupção. O
protagonista-narrador vive só com o irmão mais novo doente, até que o leva ao front de batalha para conseguir dinheiro
com seu pai, general do exército lutando numa guerra sem motivo, sem inimigo
certo, guerra desterritorializada. A partir daí, o enredo envolve dispersões,
não pertencimento, androginia, homoerotismo, objetificação sexual,
escatologias, tédio, muito tédio e vazio, grande carga de sexo explícito,
poesia delirante. Há descrição de cenas de sexo a cada duas páginas em média. O
livro assusta ao leitor desavisado, mesmo aos avisados, assusta, não é texto de família. João Gilberto Noll afirma em
várias entrevistas o quanto a sexualidade ocupa grande espaço em sua
literatura. Para quem não o conhece, o autor gaúcho começou a publicar na
década de 80 e desde então tornou-se uma das grandes referências contemporâneas
para a nova geração de escritores brasileiros, além de ser muito estudado pela
academia, talvez por conseguir reter com precisão as características deste
tempo veloz e híbrido, da mesma forma em que desconstrói as características
clássicas do texto narrativo. Nada é, tudo se move na existência dos personagens,
no texto orgânico pulsante vivo. Recomenda-se pular de peito, deixar-se
assustar, deixar-se enojar, deixar-se. Sinto pós-modernidade no estômago.
Quatro) O capitão saiu
para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, Charles Bukowski,
1998, Ed. L&PM, 150 páginas
Diário pessoal escrito entre 1991-1994, com trechos selecionados
pelo próprio Bukowski, foi publicado pela viúva Linda Lee Bukowski somente em
1998, quatro anos após a morte do autor. Aqui encontramos um Buk entediado,
sufocado pelo cotidiano dividido entre a escrita e o hipódromo; não há mais
tanto álcool, nem prostitutas, nem despejos, Bukowski agora mora
confortavelmente numa bela casa em Los Angeles. Além disso, a morte é o próximo
passo e o autor a sente, enfrenta: A
morte vem para aqueles que esperam e aqueles que não esperam. Engana-se,
porém, quem pensa ser o livro chato. O velho safado continua lá, vivo, mesmo
ceticismo, mau-humor, graça seca – velho
cada vez mais literalmente: Em 1989,
superei uma tuberculose. Este ano, operei um olho que ainda não está bom. E dor
na perna, calcanhar e pé direitos. Coisas pequenas. Pedaços de câncer na pele.
A morte mordendo meus calcanhares, deixando que eu saiba. Sou um saco velho, é
isso. A tríade ócio-morte-literatura, mais do que temas, são fantasmas,
tormento e maravilha, rondando o escritor. O resultado, sucessão de
genialidades, aulas involuntárias de escrita – tanto por sua voz inconfundível,
quanto pelo que ela conta: As horas
perfeitas são as que passo nesta máquina. Mas você tem que ter horas
imperfeitas para ter as perfeitas. Você tem que matar dez horas para que duas
vivam. O que você tem que cuidar é para não matar TODAS as horas, TODOS os
anos. Em outro trecho: Escrevo uma
merda diferente agora. À beira da morte, casa com piscina, Charles Bukowski
ainda é rei desta merda toda. Não precisa dormir na rua, transar com
prostitutas, falar palavrões, não pagar aluguel, quase morrer de hemorragia por
tanto beber e fumar, para escrever bem. É preciso estar lá. Equilibrando-se
numa corda bamba, mesmo confortavelmente. Lá.
(dois trechos da obra:
um e
dois)
Três) Capitães da
areia, Jorge Amado, 1937, Ed. Companhia das Letras, 262 páginas
Capitães da areia é,
sobretudo, uma obra humana. Toca o que há de mais fundo, substância que nos
une, não obstante nossas diferenças; desarma todos os escudos, faz escorrer
essa tal substância pelos poros, respiração, faz deitar de tanta moleza que dá.
Além de tudo, é belo esteticamente, literatura fina, pura, simples. Palavra que
diz. Palavra que chega. Não há enfeite linguístico, Jorge Amado constrói as
sentenças e os capítulos deixando cereja de poesia sempre para o final, último
suspiro.
A narrativa gira em torno do cotidiano de crianças e
adolescentes moradores de rua na cidade de Salvador, Bahia. Mas esse enfoque se
dá de dentro pra fora, de baixo pra cima. Por mais que seja narrado em terceira
pessoa, o narrador parece fazer parte do grupo, conviver com os meninos, dormir
no trapiche abandonado, furtar pequenas quantias. Jorge Amado, para escrever a
obra, conviveu com moradores de rua reais, observou-os de perto. O resultado é
a aproximação instantânea entre personagens e leitor(a), desarmando até os mais
reacionários ao tratar da situação de rua, racismo, candomblé, machismo,
menoridade penal, greves sindicais, infância abandonada de modo tão honesto. O
grande feito do autor aqui é humanizar sujeitos relegados à margem da história
branca, eurocêntrica, heteronormativa, patriarcal, sejam meninos de rua,
praticantes de religiões de matriz africana, trabalhadores, malandros,
prostitutas, mulheres. De declarada orientação marxista, Jorge Amado, mais do
que problematizar questões, com literatura, apresenta possibilidades de mudança
no quadro de desigualdade, aqui simbolizadas pelo personagem Pedro Bala, líder
dos Capitães da Areia, quem organiza o grupo e não se contenta com destinos
fadados à pobreza, marginalidade. Pedro Bala vê horizonte possível. Para toda
opressão, resistência. A própria existência em condições de miséria já é resistir.
Vale ressaltar, ainda, a abordagem sobre gênero e
sexualidade trazidas pelo autor. Sexualidade, primeiramente, na relação
homoerótica entre os meninos de rua no trapiche. E gênero, tanto na relação de
dominação dos meninos em relação às mulheres (e aqui interseccionalmente entra
a questão racial, porque a maior parte das mulheres com quem eles se
relacionam, principalmente em relações de abuso, são negras – a cena de estupro
no areal é bem forte e não acredito ter sido intenção do autor desconstruir opressões
de gênero), quanto, em outra perspectiva, a inserção de Dora na história, única
menina entre os Capitães da Areia, personagem que subverte os papéis de gênero
impostos à mulher naquele contexto específico, por exemplo, sair para furtar
ser tarefa exclusiva de homens etc. Enfim, ainda há muito o que ser dito. Há a
questão da luta de classes e do cangaço muito bem marcadas, tanto que, quando
lançado, o livro teve vários exemplares queimados pela polícia do Estado Novo de
Getúlio Vargas, dado o caráter subversivo.
Uma boa obra para mim é aquela que pode ser lida sob
diversas perspectivas. Capitães da areia
é assim. Recomendo que leiam e descubram seus próprios caminhos para análise.
Em todos, encontra-se retratado um Brasil profundo, sincero, multifacetado, vibrando
as cores da Bahia, o calor que vem de lá.
Dois) Morangos mofados,
Caio Fernando Abreu, 1982, Ed. Saraiva, 160 páginas
Esqueçam as citações falsas do Caio Fernando Abreu. Aquele
tom meloso-romântico-sentimental não é dele. Aqueles clichês todos também não.
Um dos meus escritores favoritos de todos os tempos, Caio é muito mais cruel,
pessimista, marginal do que essa imagem que se criou dele. Assim como João
Gilberto Noll, não é um escritor de
família. Os personagens deste livro podem apresentar longinquamente alguma
similaridade com personagens bukowskianos, exceto pelo alto grau de politização
e sexualidades não normativas. A sexualidade é um ponto importante na obra. Mas
existe outro ainda mais: a política (não que sexualidade não o seja).
Lançado em 1982, Morangos
mofados, livro de contos, retrata sujeitos ressaqueados pela luta contra a
ditadura; personagens antes engajados, mas que, agora, com o regime militar
afrouxando o cerco, caminhando à redemocratização, perdem significativamente o
sentido da vida. Os sobreviventes,
conto preferido do livro e de todos os tempos, é o grande símbolo dessa fase de
ressaca: dois amigos, um homem e uma mulher, marxistas ex-militantes em diálogo
típico de uma boa ressaca: o cara tá indo se aventurar no Sri Lanka, e a mulher
se sente traída, abandonada: Uma certa saudade, e você em Sri Lanka, bancando
o Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era
bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui
entre nós, palmeiras & abacaxis. O tom desiludo pessimista sem caminho
possível exceto ouvir Ângela Ro Ro e beber até vomitar produz aquele tipo de leitura
que, de tão decadente, te faz repousar nela por um instante, seu lugar, para
depois levantar alimentado pela dor do outro: ninguém é feliz o tempo todo.
O livro é dividido em três partes: O mofo, parte que retrata a repressão da ditadura, ausência de
caminhos possíveis, pessimismo, deprê total; Os Morangos, com contos
que partem de uma situação ruim, mas alcançam algum tipo de horizonte possível
(não um otimismo cego); e Morangos
Mofados, síntese das duas partes com um conto só, de mesmo título.
Caio Fernando Abreu era homossexual assumido, militou
durante a ditadura, envolveu-se com drogas e morreu devido a complicações
causadas pela AIDS. Viveu este período intensamente, portanto. Era um cara sensível
depressivo suicida do caralho, lindão. Um ídolo. Retratou sua vida através de
seus personagens, por isso, aqui, encontramos gays, lésbicas, usuários de
drogas, hippies, adolescente descobrindo sua homossexualidade, entre outros
desviantes às regras. Caio é referência brasileira quando se trata de
homoerotismo e sexualidades não-normativas na literatura – destaque para os
contos: Os sobreviventes, Terça feira
gorda, Sargento Garcia e Aqueles
dois.
Bonita a organicidade da obra, tanto temática
quanto linguística – o belo prefácio escrito pela Heloísa Buarque de Holanda contribui
muito para a orientação da análise nesse sentido. Nesta edição da Saraiva de
bolso, inclusive, há uma carta incrível do autor ao jornalista e amigo José
Márcio Penido, que conta o processo de criação do conto Morangos Mofados, entre outras belezas.
Sinto que rola um preconceito em relação ao Caio entre
leitores, devido às citações falsas em redes sociais. Só digo uma coisa: deixe
esse preconceito pra lá, caia de cabeça na obra, sofra, chore, rasgue as
feridas com o dedo, como faz os personagens e o autor. Morangos mofados
amargam, mas no final podem ser doces.
Um) A legião
estrangeira, Clarice Lispector, 1964, Ed. Rocco, 110 páginas
Ai, ai. Em toda lista de referências, Clarice está. Muito já
se falou sobre ela, não vou me alongar. Desconfio que em todas as listas de
livros que eu fizer, não vai dar outra. A mulher é monstro, deusa, bruxa, todos
os nomes referidos à transcendência. De alguma forma, e este é seu mistério,
ela se comunica com outras dimensões da realidade escondidas da maior parte de
nós. Ela se comunica. E, tão generosa, escreve para compartilhar conosco essas
conversas brutas, perdições. Sua literatura são essas conversas consigo – a
transcendência, afinal, podia estar dentro dela, ser ela, bastava-lhe olhar-se:
‘Eu’, tentava dizer seu corpo molhado
pelas águas. Suas núpcias consigo mesma. Os contos deste livro são todos
incríveis, sem exceção. Muito se fala sobre a irregularidade em livros de
contos. Aqui, na minha visão, Clarice vence esse estigma: consegue doar-se da
mesma maneira para cada um. Deságua. Ao final da leitura de cada conto, minha
cabeça terminava pulsando, grande, marretada feito sino. Sua abstração chega ao
limite no conto O ovo e a galinha,
grande variação sobre essas duas imagens. Além dele, menciono de forma especial
Os desastres de Sofia, não sem
reafirmar a beleza de todos os contos, indistintamente. Clarice é grande demais
para caber numa resenha.
ps: para 2015, ler mais escritoras, escritoras negras,
escritores negros. duas mulheres numa lista de sete autores, nenhuma negra,
nenhum negro, não é número ocasional, reflete muito quem tem destaque na
literatura brasileira, reflete muito como são construídas nossas referências.
;)
até.