quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Alguém, trajado de seda branca

Alguém, trajado de seda branca, percebe que não pode
despertar; pois está desperto e perturbado pela realidade.
Assim se refugia medrosamente no sonho, e permanece de
pé no parque, sozinho no negro parque. E, a festa é longe.
E a luz mente. E a noite o envolve, fresca. E pergunta a uma
mulher que para ele se inclina:
“És tu a noite?”
Ela sorri.
Então, ele se envergonha de seu traje branco.
E quereria estar longe, sozinho, armado.
Completamente armado.



(Rainer Maria Rilke, A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. Tradução: Cecília Meireles. Biblioteca Azul, 2013)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Enfer du Plogoff

Foto: Ruprich-Robert, Gabriel (collection)
Crédito: Ministère de la Culture (France), 
Médiathèque de l'architecture et du patrimoine, Diffusion RMN-GP



“‘Adoro o mar e as planícies... mas não ligo para montanhas nem florestas... elas me esmagam, me sufocam.’ Na Inglaterra, encontrou horrendos precipícios abertos para o ‘barulho infernal do mar’, com pedras que se arrastavam por baixo e lá tinham caído ‘em eras ignotas, só se mantendo em equilíbrio por alguma inexplicável causa’. Houve também uma grande fenda, o Enfer du Plogoff, pela qual ela resolveu descer, apesar das misteriosas advertências do guia. Tomada a decisão, baixaram-na por uma corda presa num cinturão, no qual foi preciso fazer mais furos, pois sua cintura ‘não passava na época de 43 centímetros’. Já estava escuro e o mar bramia e havia um rumor confuso e contínuo, como se de canhões e de açoites e de gemidos dos réprobos. Por fim ela tocou o chão com os pés, na ponta de uma pequena pedra num turbilhão de água, e, amedrontada, olhou ao redor. Viu de súbito que era observada por dois olhos enormes; um pouco adiante, viu outro par de olhos. ‘Não via o corpo desses seres... e cheguei a pensar que já perdia a razão.’ Deu então um puxão com força na corda, sendo içada lentamente; ‘os olhos também subiam... e, enquanto eu me levantava no ar, por toda parte não via senão olhos – olhos que esticavam longos sensores para me alcançar... “São os olhos dos afogados”’, disse-lhe o guia, benzendo-se. ‘Que não eram olhos de afogados eu bem sabia... mas foi só quando cheguei ao hotel que ouvi falar sobre o polvo.’”



(Virginia Woolf, As memórias de Sarah Bernhardt, In: O valor do riso e outros ensaios.
Tradução: Leonardo Fróes. Cosac Naify, 2014) 

memória (II)


sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Arrumar o quarto

Guardo esta noite para a reconciliação. Quantos voltaram a escrever após arrumarem o quarto. Uma noite inteira para olhar um a um os livros caídos. Se eu pudesse, fotografaria esta cascata. Quanto tempo? Me reconciliar com a poeira dos discos, das revistas, desempilhá-los, observá-los um a um em seu abandono, um quarto. Durante, arroz no fogo, meus dedos abandonam o corte da página, corte preciso, resto de cenoura. Geladeira abandonada. Retorno.


(Clique na ilustração abaixo para ler a crônica na íntegra)