sábado, 22 de novembro de 2014

ao david

“ – No começo, achei que era uma árvore só. Eu a vi de longe, eu vinha caminhando e lá estava ela, enorme, toda florida, assim com pencas de flores de todas as cores, mas acho que principalmente roxas e amarelas, despencando até o chão. Não parecia de verdade, parecia uma coisa desenhada, assim meio de quadro, de ilustração de história infantil, filme de Walt Disney. Sabe Branca de Neve? – Ela sorriu também, cruzando os braços sobre os seios tranquilizada. Ele não percebeu. – Uma árvore assim, de fantasia. A mais bonita que eu já tinha visto em toda a minha vida. Aí eu parei e fiquei olhando. Tinha uma coisa forte ali me chamando e eu não conseguia ir em frente, eu devo ter hesitado muito tempo antes de chegar cada vez mais perto, e de repente eu estava dentro dela. Não, espera, não foi assim. Entre os ramos cobertos de flores havia uma espécie de vão, uma fresta, uma porta, e eu fui entrando por ela até ficar dentro daquela coisa colorida. Era escuro lá dentro. Era cheio de galhos trançados e torturados, e muito escuro, e muito úmido, parecia assim ter feito uma grande dor ali cravada naquele centro cheio folhas apodrecidas e flores murchas no chão. Pelo vão, pela fresta, pela porta eu conseguia ver o sol lá fora. Mas aquele lugar era longe do sol. Era uma coisa, uma coisa assim desesperada e medonha, você me entende? Então pensei em sair lá de dentro imediatamente, sem olhar para trás, mas ao mesmo tempo que queria ir embora, queria também ficar para sempre lá, e se me descuidasse, se alguma coisa mínima em mim perdesse o controle eu me encolheria ali naquele chão frio, olhando os galhos tão emaranhados que não passava nunca um fio daquela luz do sol lá de fora. Eu fui embora, eu não queria olhar para trás, mas sem querer olhei e lá estava ela de novo como eu a tinha visto da primeira vez. Uma árvore encantada, dessas que você pode fazer pedidos e talvez entrar num estado especial embaixo dela e ver, como se chamam, como é mesmo? os devas, isso, os devas, as ninfas, os faunos. Vista de fora, de onde eu estava, era uma árvore assim, com um lindo deva que eu quase via, roxo e amarelo como as flores, meio que dançando, quem sabe tocando flauta em volta dela. Então lembrei do escuro e achei que entendia e sem querer formulei com dificuldade uma coisa mais ou menos assim: é daquele emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa beleza que joga para fora. – Ele parecia muito cansado quando parou de falar e perguntou: - Você entende?”

Autor: Caio Fernando Abreu
Conto: Caixinha de música
Obra: Morangos Mofados

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Grace Jones, uma daquelas pessoas-divindades que ninguém sabe como existem sem implosão, se é que existem













L. e o canal que se expande

Era um castelo medieval onde funcionava um colégio interno. Eu estava lá, junto com uma turma, visitando, ficaríamos o dia inteiro. Havia água, competições, não lembro ao certo. Em dado momento, peguei no colo um amigo, R., que estava em forma de bebê, mas totalmente redondo, seu rosto estava esticado. Peguei-o no colo e caminhei com ele por um grande corredor, ninando-o. Atrás de mim, notei, estava vindo devagar um rapaz muito bonito, que conheço pessoalmente, L.. Senti interesse sexual por ele. E, pelo ritmo dos passos que dava, lentos como os meus, cogitei também o seu interesse. Até que L. me alcançou, caminhou ao meu lado. Por já o conhecer, puxei conversa, perguntando se estava tudo bem. L. trabalhava no colégio, vestia um macacão cinza todo sujo por fuligem, como se trabalhasse com carvão. Comentei que o colégio estava bastante movimentado com a visita. E ele me disse que não gostava quando vinham visitas, porque se apegava às pessoas e elas iam embora rapidamente. L. estava muito sério e pouco me olhava nos olhos.

Caminhamos, até que ele entrou numa grande sala sem porta, separada do corredor apenas por um grande portal. Entrei também. Na sala, de paredes salmão, havia uma varanda. Além disso, passando por dentro da sala grande, chegávamos a uma sala de tamanho médio que, por sua vez, conduzia a uma terceira, de tamanho menor. Debruçamo-nos na varanda, olhamos a mata lá fora e conversamos sobre algum assunto que não me lembro. Ele continuava demasiado sério e sem me olhar no rosto. No entanto, nesta altura, eu já havia notado seu interesse sexual por mim. Ambos estávamos interessados um no outro. De repente, sem ser explícito, ele indicou que fôssemos para um lugar mais reservado. Da sala grande, passamos pela sala intermediária até chegarmos à sala menor. Havia, na parede lateral, um pequeno orifício, como um cano de espessura mínima, diâmetro um pouco maior que o de uma caneta. Ele me indicou o local, o tal lugar mais reservado, e, me pedindo para segui-lo, entrou por esse pequeno cano, abrindo espaço com o próprio corpo, esticando-o, como as cobras se esticam ao engolirem grandes presas. De repente, sumiu. Por um instante, pensei sobre a possibilidade de acompanhá-lo. Não sabia aonde aquele canal me levaria, mas o meu interesse por aquele homem estava me movendo. Deixei R. numa estante da sala, fui ao quarto, peguei minhas coisas, enquanto me decidia, e voltei até o orifício. Por já haver transcorrido certo tempo, pensei que L. poderia estar impaciente me esperando, onde quer que estivesse. Olhei no celular e havia uma mensagem de voz dele, não ouvi. Resolvi entrar pelo caninho e encontrá-lo sem mais demoras.

Introduzi meu dedo no buraco e percebi que ele realmente se esticava, era feito de uma borracha muito elástica. Logo em seguida, introduzi minha mão direita, depois a mão esquerda, as duas mãos juntas, esticando-o. Enfiei meus dois braços, mas a borracha se rasgava e seria impossível penetrá-la. Retirei a parte rasgada, inseri meus dois braços novamente, depois minha cabeça, meu tronco, entrei. Dentro do espaço do caninho, havia uma sala de ginástica, uns colchonetes no chão. Comecei a fazer exercícios de alongamento, enquanto imaginava L. ali comigo, em contato corporal enquanto fazíamos exercícios juntos. Jogava-o para um lado, depois para outro. Nesse contato imaginado, ejaculei. Após isso, continuei o percurso pelo canal (não havia saído dele) e, na dificuldade em respirar e me movimentar, rastejando naquele espaço apertado, a imagem que via de dentro era a de um papel pardo amassado. Encontrei uma caixinha cheia de remédios. A instrução era de que eu precisava ingerir um pó dourado para não passar mal durante o percurso. Para medir a quantidade certa, teria que espalhar o pó por toda a minha mão esquerda e lambê-la. Mão dourada, lambi. Continuei o percurso até o fim, quando apareci, finalmente, num espaço verde, em declive, em paz, como a capa do novo disco do Sam Amidon.


Assim como na capa, havia pessoas interagindo com o espaço, em plena harmonia, integradas. Percebi que eu já havia estado naquele lugar antes. Logo, raciocinei que eu não precisaria do percurso através do orifício para chegar até lá, a realidade me encaminharia da mesma forma, se eu quisesse. Conhecia o caminho, inclusive. Duas primas chegaram de carro até o local, sentamos juntos numa mesa de concreto. Ficamos discutindo sobre se aquelas pessoas, que ali moravam, seriam comunistas. Perguntei a uma das primas se ela teria visto L., ela disse que sim, mas ele já havia partido. Tarde demais, pensei. Mas lembrei da mensagem de voz em meu telefone e a ouvi.

L., ao invés de perguntar onde eu estava, porque não havia ainda chegado, agradeceu pelo nosso encontro, disse que foi muito bom termos estado juntos e, pela primeira vez, senti entusiasmo em sua voz. 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

mas caio

“Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar. As janelas abrem para fora, os bancos parecem-se aos bancos e os vasos foram feitos para se colocar flores em seu oco. As coisas todas se parecem a si próprias. Nada modificará o estar das coisas no mundo, e a minha partida ontem, hoje ou amanhã, não mudará coisa alguma. Cada coisa se parece exatamente com cada coisa que ela é. Assim eu próprio, me parecendo a mim mesmo, de um lado para outro, entre cigarros sem sabor, jornais sangrentos e a certeza de que o único fato que poderia deter minha partida seria a tua aceitação deste convite: não queres me ajudar a matá-lo?”

Conto: Eu, tu, ele
Obra: Morangos Mofados
Autor: Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

fernanda uma constante


gratidão, fernanda. por me representar de saia, pelo sem-fim de cores, pelos sê-los, pelo selo de cuba, pelo david ao meu lado, rabiscado, como ele verdadeiramente é. gratidão pelo meu pé amado, nesta posição que tanto uso, meio fálico, meio antena-satélite. gratidão por ter-me evitado o rosto, ou por tê-lo representado tão honesto, um borrão colorido que se expande. um dia me tomará inteiro.  gratidão pelo texto ao fundo, pelo fundo, que não li, mas suponho palavras bonitas, como o seu olhar para este nosso mundo, que tanto te necessita. 

(colagem de fernanda xavier)

domingo, 2 de novembro de 2014

o amargo

que Os sobreviventes e Terça-feira gorda eram meus contos preferidos do Caio Fernando Abreu, eu já sabia. mas eis que surge Os companheiros e me dá uma rasteira, dizendo, entre outras maravilhas, como um reflexo colorido do próprio conto, assim

“Se bem que, como rugas e perdas, cicatrizes também fossem troféus. Grandes fracassos, tipo Napoleão em Waterloo, deveriam ser condecorados, afinal por que essa discriminação maniqueísta? cobrava o Ator Bufão, vezenquando tomando as rédeas para jogar no ar palavras que, como bufão que era – e dos bons, diga-se a seu favor –, transformavam-se em várias bolas ao mesmo tempo jogadas para o alto. Seria capaz de (des)ordená-las nas mais infinitas sequências combinatórias, tipo duas vermelhas no ar sobre a cabeça uma roxa na mão esquerda uma azul na mão direita e aquela amarela passando por baixo da perna direita ou esquerda, não importa, e no ar também, neste exato momento, aquela verde-musgo. O problema maior do Ator Bufão era que todos os seus talentos não valiam um vintém, visto que nos dias de hoje já não existe muita gente interessada em bizarras combinações no ma-la-ba-ris-mo com bolas coloridas.”

terminei a leitura catando sem pressa ca-da-pa-la-vra para que eu não as perdesse, ou não as deixasse cair, como as bolas. mas a gente sempre deixa – antecipando inconscientemente a vontade de catá-las depois.


ps.: a propósito, todos os contos citados estão no livro Morangos Mofados, livro zunido fino nos tímpanos, o próprio amargo.  

Alinhavar

eles te fazem
antes de arrematarem o nó,
você se desfaz

eles observam o movimento da linha
saindo do tecido,
- quer ajuda na costura?

já se está em movimento.
eles sabem.


- fernanda xavier