quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Seu nome era Eremita

 

(Ivan Shishkin, Beira da Floresta, 1885)


"Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Uma tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar.

Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se poderia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza.

Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - floresta. 

Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. [...]

Assim era Eremita."


(Clarice Lispector, A criada

em "Felicidade clandestina")

[O edifício do Centro comercial], Damián Ríos

 💙 Saiu minha primeira tradução 💙

Encontrei este poema do Damián Ríos numa livraria em Buenos Aires. Não conhecia o autor, não conhecia o livro, mas me atraiu, primeiramente, o fato do Damián ter rios em seu sobrenome. Depois veio o resto. Mas "como escrevo de memória/ não posso dar muitos detalhes".

Traduzi pelo prazer de compartilhar a jóia escondida ali, naquela livraria na beira de um lago - ou seria na beira de um rio?

E agora tô pensando em traduzir o livro inteiro, que é tão lindo quanto esta parte. Preciso de coragem. Também preciso de coragem para, com meu espanhol fajuto, enviar um e-mail para o autor e dizer: muchas gracias. Aceito companhia. Tradução é aventura.

Para ler, clique aqui. 

Ventiladores

 


Que alegria pode vir disto?

***

Na minha cidade quente, o único ar-condicionado público foi, durante muito tempo, o do Banco do Brasil. Uma enorme sensação de prazer e o desejo de dormir ali dentro, quando minha mãe, após o trabalho, me levava ao banco como uma espécie de passeio. Ela ficava resolvendo suas coisas adultas no caixa eletrônico, e eu ora ficava-lhe observando, admirando a sua destreza em apertar as teclas certas, em digitar sem erro sua senha numa tela cheia de sílabas, em pedir dinheiro e a máquina dar-lhe, minha mãe era uma instituição poderosa; ora eu ficava zanzando por aquele ambiente gélido, piso branco, luz branca, outra espécie de deserto. Antes de pisarmos fora, o lamento: encarar de novo aquele ar quente. Nossa vida que evapora.

***

Nas últimas semanas, o capitalismo mais uma vez se alegrou com a crise climática: aumentou o preço do ar.

***

Ontem eu também fui comprar alguma medida provisória: no Carrefour, a seção de ventilador, a mais disputada. Perdidos, olhávamos para as possibilidades, qual, dentre todas as caixas? Ninguém sabia comprar. Alguns tiravam dúvidas com outras pessoas pelo celular, outros, como eu, apenas examinavam as caixas, esperando vir delas alguma resposta. Como chegamos aqui, a este ponto da história? Assim, disseram as caixas.


***


(Pintura:"A Guerra dos Kanaímés 10", Jaider Esbell).

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Correr, correr, correr


O arquipélago de Tuvalu, no oceano Pacífico, vai desaparecer dentro de 50 a 80 anos devido ao aquecimento global antropogênico. Hoje a Austrália assinou um acordo bilateral de refugiar toda a população desse país ao longo dos próximos anos. 280 pessoas se refugiarão por ano até que o conjunto de ilhas esteja, finalmente, pronto para o fim. Como saída possível, Tuvalu planeja reconstruir o país no metaverso, tornando-se a primeira nação digital do mundo.

Em Belo Horizonte, vivemos o dia mais quente da história em setembro deste ano. E uma onda de calor ainda pior está prevista para a próxima semana.

Seca no Amazonas.

Ciclones e tempestades no Rio Grande do Sul.

Renan, um amigo do ensino médio, de repente começou a correr, correr, correr, todos os dias. Um dia, perguntamos a ele: por que você decidiu correr agora?

- Para fugir do fim do mundo, respondeu.

- Fugir para onde?, uma amiga lançou prontamente.

Rimos juntos. Depois ficamos todos sem resposta.


***


(Pintura: "A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade", Jaider Esbell, 2021)

Pescador invisível

"Pescador invisível", um sonho que escrevi, acaba de ser publicado no Portal Aboio. Nele, só depois percebi, coube tudo que eu mais amo.

Para ler, clicar aqui. 


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

O vento solitário que vai para longe de mãos vazias



"Hoje eu queria apenas abrir um álbum antigo de fotografias, onde não houvesse gente de olhos duros e mãos aduncas. Onde umas boas senhoras pousassem no papel com delicadeza, não para sobreviverem eternamente, mas para mandarem seus retratos às amigas com finas letras de 'sincera afeição'. Um álbum onde aparecessem uns bons velhotes que não faziam negociatas, que não sabiam multiplicar dinheiro, que usavam roupas desajeitadas, sofriam de reumatismo, liam Virgílio e Horácio, e não tinham medo dos fantasmas do porão. De lá de dentro de seus retratos essas sombras estariam dizendo: 'Meus filhos, nada disso vale a pena...' (E saberíamos que falavam de parentes sôfregos, ávidos de partilhas, uns querendo herdar as terras do morro; outros, a mata; outros, a várzea - todos vivendo já do testamento, antes mesmo da extrema-unção...) Hoje eu queria ficar folheando este álbum, onde não desejaria encontrar aqueles herdeiros. 

Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...

Hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência, autêntica, integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboletas nem abelhas de permeio. Uma existência total, no seu mistério. (E antes da flor? - Não sei.) (E depois da flor? - Não sei.) Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria.

Hoje  eu queria estar entre nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidade, na sua docilidade de serem e deixarem de ser. Livremente. Sem interesse próprio. Confiante. À mercê da vida. Sem nenhum sonho de durarem um pouco mais, de ficarem no céu até o ano 2000, de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, busto no jardim... (Ó nuvens prodigiosas, criaturas efêmeras que estais tão alto e não pretendeis nada, e sois capazes de obscurecer o sol e de fazer frutificar a terra, e não tendes vaidade nenhuma nem apego a esses acasos!) Hoje eu queria andar lá em cima nas nuvens, com as nuvens, pelas nuvens, para as nuvens...

Hoje eu queria estar no deserto amarelo, sem beduíno, camelo ou rebanho de cabras: no puro deserto amarelo onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente. O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.

Hoje eu queria ser esse vento."


[Cecília Meireles, "Compensação", 
crônica publicada em  "Escolha o seu sonho", 1964]

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Caboclo grande

 

(Rogério Rodrigues)


"Perdi o sonho com o caboclo grande.

Havia muita água, disso me lembro.

Perdi o sonho, mas vou tentar reconstruí-lo aqui, depois de tanto tempo, através da escrita: este sonho que se faz quando acordado."

"Caboclo grande", um sonho a mais publicado Revista Mormaço. 

Para ler, clique aqui. 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Uma vez eu sonhei que era uma borboleta

 


(Zhuangzi Dreaming of a Butterfly, Ike no Taiga)


"Uma vez eu, Zhuang Zhou, sonhei que era uma borboleta flutuando de um lado para o outro, uma verdadeira borboleta, desfrutando ao máximo de sua plenitude, e não sabendo que era Zhuang Zhou. De repente acordei e me encontrei, o verdadeiro Zhuang Zhou. Agora já não sei se era então um homem que sonhava ser uma borboleta, ou se sou agora uma borboleta que sonha que é homem."


(Zhuang Zhou, 369-286 a.C. 

Trecho extraído do livro "O oráculo da noite", Sidarta Ribeiro, 2019)