domingo, 22 de dezembro de 2019

O lar, a casa



[Thaisa Figueiredo]


“O lar, a casa – algumas peças exíguas, onde se apinhavam, de maneira sufocante, um homem, uma mulher periodicamente prolífica, um bando de meninos e meninas de todas as idades. Falta de ar, falta de espaço; uma prisão insuficientemente esterilizada; a obscuridade, a doença, os cheiros.

(A evocação feita pelo Administrador era tão vívida, que um dos rapazes, mais sensível que os outros, só com a descrição empalideceu e esteve a ponto de vomitar.)


E o lar era tão sórdido psíquica quanto fisicamente. Do ponto de vista psíquico, era uma toca de coelhos, um monturo, aquecido pelos atritos da vida que nele se comprimia. Que intimidades sufocantes, que relacionamento perigoso, insensato, obsceno, entre os membros do grupo familiar! Insanamente, a mãe cuidava de seus filhos (seus filhos)... cuidava deles como uma gata cuida de seus filhotes... mas como uma gata que falasse, uma gata que soubesse dizer e repetir uma e muitas vezes: ‘Meu filhinho, meu filhinho!...’ E ainda: ‘Meu filhinho, oh, oh, ao meu seio, as mãozinhas, a fome, este prazer indescritivelmente doloroso! Até que, finalmente, meu filhinho dorme, meu filhinho dorme com uma bolha de leite branco no canto da boca. Meu filhinho dorme...’

– Sim – disse Mustafá Mond, meneando a cabeça –, é natural que os senhores estremeçam.”


[Aldous Huxley, Admirável mundo novo.
Tradução: Vidal de Oliveira.]

terça-feira, 8 de outubro de 2019

O martelo


[O poeta do castelo, 1959]


As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei.
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.


[Manuel Bandeira, Meus poemas preferidos.
Edição original: 1966]

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

3 desvios


[Kasimir Malevich, 
Quadrado negro sobre fundo branco, 1918]


POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e [manifestações de apreço ao senhor diretor
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, [etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


[Manuel Bandeira, 
Meus poemas preferidos. Edição original: 1966]


***

FRONTEIRA

só tenho como viver se desvio.
passo me esquivando, finjo o sorriso,
prefiro não.

se fecha tudo sobre mim:
ao menos se tivesse
terra ou mar para onde abrir o arco

passaria noites dias imersa
em um ritmo outro que não
o desta cidade que arfa de sufoco
e calor

(sonho uma vez por semana
que moro a quarenta passos do mar)

meu afeto todo para as janelas
os quintais os becos
o que existe ainda de espaço

deita aqui
vou ler pra você aquele poema

depois dar no pé
evaporar
quanto menos gente souber melhor


[Jéssica Martins Costa, 
Bubuia. Editora Patuá, 2017]

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Se eu fosse um geógrafo


(autoria desconhecida)


“Se eu fosse um geógrafo, um fazedor de mapas, se, em vez deste relato, os editores da revista tivessem me solicitado a proposta de um mapa perfeito, acho que não utilizaria rascunho nem modelo, acho que faria um mapa sem fontes. Começaria do nada, de uma folha em branco, e esse seria o grau zero do meu mapa perfeito. Meu mapa perfeito vai se desenhando aos poucos, é infinito. Uma cidade infinita e ausente. Para entrar nesse mapa, para inscrever-se nele, um lugar teria, antes, de deixar de existir: destruído ou morto. A casa demolida, o poste tombado, o pântano aterrado. Esquinas, ruas, parques. Tudo o que desaparecesse, e que fosse irrecuperável. Hoje, a cada vez que dou um clique na minha máquina, penso nisso, penso nesse mapa negativo, em um atlas negativo – de tudo o que acabou. Talvez seja essa uma forma de dominar o tempo: o mapa perfeito é o mapa do que não há mais.”


[Marcílio França Castro. A história secreta dos mongóis
In: Histórias naturaisCompanhia das Letras, 2016]

terça-feira, 16 de julho de 2019

Urano


(autoria desconhecida)


“O céu se tornara mais limpo, inteiro, desviando-se do azul para o lilás. De vez em quando se ouvia o estrondo de uma detonação.
O que é que você está preparando agora, Sara? Marcela perguntou.

Uma teia, ela disse. Uma teia entre livros. –
– Uma linha sai de um livro, vai a outro livro, e a outro. –
– Vou costurar uma biblioteca inteira.

Tom abraçou-se às duas:
Hadar... Acrux, Becrux – ali, no Cruzeiro do Sul. Antares, a Oeste. Pégaso, Andrômeda, Escultor, Fênix... Tom ia apontando o céu, unia com os dedos as constelações invisíveis.
Lá embaixo: Aldebarã, Bellatrix – bem embaixo, no leste.
Urano? Se você quer Urano, está ali atrás, correndo sobre Peixes, perto de Netuno. –
– Urano. Uma bola azul, gasosa, gelada. Os dias lá passam depressa, mas os anos não acabam.
No dia em que eu recuperar as palavras, ele disse, vou entender alguma coisa – essas superfícies, essa agonia.”


[Marcílio França Castro, A superfície dos planetas.
In: Histórias naturais, Companhia das Letras, 2016]

quinta-feira, 4 de julho de 2019


Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que faz um livro
quando tomba
os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar das páginas
os que veem o mundo como um grande volume ilustrado
no entanto sem legendas sem índices remissivos sem notas explicativas
os que conhecem as cidades apenas pelo nome
e acham que cabem no nome muitas coisas
inclusive certas ruas vazias de madrugada
as casas prestes a serem demolidas
os mesmos talvez que pensam que um corpo pesa tanto
na cama quanto no pensamento
aqueles como nós para quem o desejo
não é prenúncio mas já a aventura
os que se reconhecem na tristeza
das piscinas vazias à beira-mar


[Ana Martins Marques, O livro das semelhanças, Companhia das Letras, 2015]

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Gosto de ler na lavanderia


[Arthur Camargos]


porque é onde as roupas entram sujas e saem limpas
porque é onde as roupas ficam estendidas um tempo
antes de enfrentar novamente as pessoas
e nesse intervalo recuperam
a dignidade perdida em algum canto da metrópole
porque só os grandes poemas resistem ao cheiro do sabão em pó
e do amaciante
porque é o lugar mais bem iluminado do meu apartamento
porque é o lugar mais bem iluminado da minha cabeça
porque o barulho da máquina de lavar é épico
ou dramático
ou lírico como uma canção russa
de Nicanor Parra
porque quando leio na lavanderia
entendo o que me trouxe até aqui
e vejo meu passado e meu futuro
e conto os minutos para voltar a viver


[Fabrício Corsaletti, Feliz com as minhas orelhas,
Coleção Leve um Livro, 2016]

sexta-feira, 31 de maio de 2019

A inconsciência e o escritor


(Roger Steffens)



“A inconsciência, que presumivelmente significa que o subconsciente trabalha em alta velocidade enquanto a consciência cochila, é um estado que todos nós conhecemos. Todos nós temos experiência do trabalho feito pela inconsciência em nossa vida diária. Vamos supor que você tenha tido um dia cheio, andando e vendo coisas em Londres. Ao voltar para casa, pode dizer o que foi que viu e fez? Não fica tudo nebuloso e confuso? Porém, após um aparente repouso, uma oportunidade de virar-se de lado e enxergar algo diferente, as visões e os sons e os ditos que lhe despertaram mais interesse afloram à superfície, ao que tudo indica por conta própria, e permanecem na memória, enquanto o que era desimportante vai afundar no esquecimento. Assim acontece com o escritor. Depois de um dia duro de trabalho, em que dá voltas e mais voltas, vendo tudo, sentindo tudo o que puder, tomando notas inumeráveis no próprio livro da mente, o escritor se torna – caso o consiga – inconsciente. Seu subconsciente trabalha em alta velocidade, de fato, enquanto a consciência cochila. Feita então uma pausa, o véu se ergue; e eis que a coisa – a coisa sobre a qual ele deseja escrever – surge simplificada e serena. Será querer demais da famosa declaração de Wordsworth, sobre a emoção relembrada na tranquilidade, quando inferimos que com tranquilidade ele quis dizer que o escritor tem de se tornar inconsciente antes de ser capaz de criar?”


(Virginia Woolf, A torre inclinada, 1940. In: O valor do riso e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Tradução: Leonardo Fróes.)

quinta-feira, 4 de abril de 2019

O homem permanecido


Era uma vez
uma venta fremente e um duro queixo.
Era uma vez um pisado de levantar pedra e poeira.
O que chamam de morte devastou com as narinas, o maxilar,
o dorso dos pés e sua planta.
Sobrou um gesto reto no espaço, a fremência,
um modo de passos e voz.
Eu lembro coisas que acontecerão:
era uma vez um homem que está rijo e cantante,
sem o espírito e a lei da gravidade,
alegre de nenhuma ameaça.

(Adélia Prado, Bagagem, 1976)

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Rufus

(autoria desconhecida)



você – como tantos outros – acabou
não morrendo. Nem aqui nem em Bruxelas
parte alguma. A questão do apartamento
permanece pendente (estar-se em
plena obra). Sem diploma não tem como.
Você passou sem cura de repouso você não contraiu
uma afecção misteriosa você não botou
os pulmões pra fora de tanto tossir
num banheiro de hotel cheio de flores. Você
segue com esse estranho hábito de não lembrar
em nada a Barbara Stanwyck, ah, que se há de fazer?
Eu me mudaria para uma fonte em Amsterdã
algemado aos clarões de água
entra dia, sai dia injuriando
assistentes sociais – mas pense bem
pense bem. Não dou corda no despertador
e é o próprio tempo que nega fogo.

Manhã – unguento geral – espalha
pelo Rio um brilho rouco – na frente do Edifício
Argentina me parece capital saber o nome das coisas –
precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil

estou cheio de prédios
voltas hélices passarelas
o metrô corre atrás do próprio rabo
um tranco, não tem quem fique em pé
você me diz: nunca dês um nome a um trem
sempre é outro trem a passar
eu digo: ha. Ha ha
ha ha

você está de dieta ou desistiu, afinal, de descortinar
uma grande verdade interior? Teus olhos têm um ar
de perda,
pendem, como os seios de uma mãe antiga. Tanto
tempo passado
em ônibus que a gente aprende à força o prazer do
caminho
chegar lá é sempre um pouco
desorientante

precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil


(Ismar Tirelli Neto, synchronoscopio, Ed. 7 Letras, 2008)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

E depois?

(Ana Teresa Barboza)


“No escritório de Natércio, ao lado da mesa, estava o globo sobre um pilar de madeira. Bastava comprimir um botão e a luz interior acendia, amarelada e suave, não alterando o azul dos mares nem o colorido castanho das terras.

Virgínia girou o globo vagarosamente. E assim que o hemisfério ocidental ficou para trás, ela o deteve entre as mãos. Ali estava o Oriente. Deslizou o indicador sobre cinco letras negras que se destacavam no colorido acinzentado: Índia. Conheceria o Ganges, sujo e misterioso como o mundo. Depois, talvez o Egito. Como se sentiria em Tebas?

Pousou as mãos abertas sobre a esfera. Entre intimidada e surpreendida, contornou-lhe a superfície morna, como se pela primeira vez tivesse sido revelado o tamanho do mundo. ‘Para isso Ele nos deu pernas’. Mas seria este realmente um plano de fuga? E os anos todos que vivera percorrendo, de norte a sul, o mundo que criara dentro de si?! E aqueles longos anos de desvairados sonhos não seriam as fugas verdadeiras, com os pés ancorados? “E mesmo que seja esta uma fuga”, admitiu com humildade. Podia ser a mais frágil das soluções, mas não lhe traria, pelo menos por ora, nenhum sofrimento. Já bebera muito da sua taça e, embora estivesse convencida de que ainda restava algo no fundo, uma voz lhe soprava que agora era a trégua.

Deixou cair os braços ao longo do corpo. A viagem marcaria a primeira etapa. E depois? Apagou a luz e o globo voltou à sua opacidade.”


(Lygia Fagundes Telles, Ciranda de Pedra, 1954)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Lembre-se de alguma coisa inútil

(Rinko Kawauchi)


“Lembre-se de alguma coisa inútil e provavelmente será isso o que estarei fazendo. Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. A música – acrescentou detendo-se ao ouvir os sons de um piano num exercício ingênuo. – Este céu que nem promete chuva – prosseguiu atirando a cabeça para trás. – Aquela estrelinha que está nascendo ali... está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os Reis Magos, nem os pastores, nem os marinheiros perdidos... Não faz nada. Apenas brilha. Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a Beleza. No inútil também está Deus.”


(Lygia Fagundes Telles, Ciranda de Pedra, 1954)