quinta-feira, 30 de julho de 2020

Balada a Philip Muir



 (Pintor de barco, Hesham Ebaid)


Philip Muir cruza o Atlântico em seu navio.
Nem almirante nem corsário: copeiro inglês.
Pele de nácar, pintas de ouro, cabelo ruivo.
Philip Muir, de brancas unhas, correto e esguio,
é um puro lorde, pelo silêncio e pela altivez.

Diz-me: Good evening, endireitando-me a cadeira.
Espera as ordens. Não fita os olhos em ninguém.
Após dois dias, conhece todos os meus gostos
à mesa. E apenas corre com o olhar a lista inteira
da sopa à fruta. Nunca se esquece do chow mein.

Do lado do Norte, há sangue nas águas do Oceano.
E do lado de Leste. E nas terras. Sangue inglês.
E por baixo do mar andam as sombras sem passos...
Philip Muir, no meio do desastre humano,
serve champanhe, hoje. Amanhã, seu sangue, talvez.

Diz-me: Good evening, endireitando-me a cadeira.
Mais tarde, na noite, acende seu cachimbo e vem
ver as estrelas nascendo do amargo horizonte,
– ilhas dormentes, que o vento embala a noite inteira...
e muitas cenas – tão diferentes! – mais além.

Nenhum soldado será mais grave nem mais frio
que Philip Muir, se ainda chega a sua vez.
Coberto de lama, sangue, injúria, dor e morte,
Philip Muir partirá num outro navio,
navio de nuvem, mas com mastro de altivez.

Nem duque nem lorde: um simples homem da Britânia.
Nem almirante nem corsário: copeiro inglês.


(Cecília Meireles. Poemas de viagens, 1974)

O filho da empregada




 (Ribs)


O filho da empregada é sempre mais velho que o nosso filho. Mesmo quando é mais moço, é mais velho. O filho da empregada já nasceu velho. É um menino velho. Seu sorriso triste é muito antigo. Vem da época dos servos, dos escravos, de antes, talvez.

O filho da empregada vem de muito longe. No mínimo tem de tomar dois ônibus até chegar à casa da patroa de sua mãe. O filho da empregada passa grande parte de sua infância andando de ônibus. Pela janela do ônibus ele vê a vida passando: as casas da vila, primeiro, e depois os edifícios de apartamentos, os supermercados, as lojas. Que tesouros, nestes lugares! O filho da empregada sabe disto porque vê televisão, na casa da patroa, ou mesmo no quarto alugado em que mora com sua mãe. Dos alimentos deliciosos, dos brinquedos engenhosos, das roupas finas, disto tudo sabe o filho da empregada. Ele é um deslumbrado: admiração é um constante componente do olhar, junto com aquela tristeza arcaica, ancestral. Mal entra na casa da patroa, o filho da empregada já começa a se maravilhar, porque lá há sempre coisas novas: um novo quadro na parede, um novo carro em frente à porta. Mas o filho da empregada não gasta logo toda sua admiração; guarda-a para o instante decisivo em que entra no quarto do filho da patroa. 

O filho da empregada brinca com o filho da patroa. Porque a patroa é democrática, é compreensiva, é humana. Mais que isto, é culta e avançada: ela quer que seu filho brinque com o filho da empregada para que experimente assim uma experiência nova, para que aprenda a conviver com todo tipo de pessoa. De modo que, mal chega, o filho da empregada é conduzido por uma mão cálida e enérgica ao quarto do filho do dono da casa. À saudação entusiasta, responde com um tímido oi. E já está olhando para todos os lados...

Que emoção ele sente! Tudo que viu na TV, todos os brinquedos recém-anunciados, ali estão. Coisas mecânicas e eletrônicas, jogos e quebra-cabeças, livros de vários tipos e formatos. Agora vocês vão brincar – diz a mãe do garoto, e se vai. O filho da empregada ali fica, imóvel, à porta do céu. O filho da patroa não parece perceber esta hesitação. Ele quer brincar; apanha dois revólveres e vai logo comandando, este é meu, este é teu; eu era o mocinho, tu, o bandido.

A esta distribuição de papéis o filho da empregada nada pode objetar; é quase um destino manifesto. Aceita a arma que lhe toca, de calibre menor e quebrada; com ela fará o melhor que pode; mas vive mal o seu papel, o que lhe vale ásperas censuras; assim não! Tu tinhas de morrer!

Morrer é uma coisa que o filho da empregada sabe fazer bem; baleado, ele cai de borco e ali fica, imóvel sobre o tapete, tal como o cadáver que um dia viu na vila em que mora. Tão bem morre que às vezes até dá inveja ao filho da patroa. Agora eu sou o bandido, diz o garoto, e ordena que troquem de armas.

Assim brinca, até a hora do lanche – uma torrada que o filho da empregada, embora advertido pela mãe (olha os modos, guri), devora: é a melhor refeição de sua semana. E depois vem TV. E às vezes acabam adormecendo, lado a lado sobre o tapete. E aí são dois garotos dormindo. Os sonhos são diferentes, claro; mas de qualquer maneira são sonhos, e para os fins de um final feliz podemos considerar que os sonhos de um garoto adormecido são exatamente iguais aos sonhos de outro garoto adormecido, não importando quem é o filho da empregada, quem é o da patroa.


(SCLIAR, Moacyr. O filho da empregada. In: A massagista japonesa.
Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011)