“Em suma,
tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e
os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe
secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a
fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como
pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e
disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade
toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia
história mais certa no mundo. (...)
(...) parecer-lhe convinhável e
necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da
república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas
armas e cavalos, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido
se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e
pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo
nome e fama. (...)
Posto a seu
cavalo nome tanto a contento, quis também arranjar outro para si; nisso gastou
mais oito dias; e ao cabo disparou em chamar-se Dom Quixote."
(Miguel de
Cervantes, Dom Quixote de la Mancha,
1605)