segunda-feira, 30 de abril de 2018
domingo, 15 de abril de 2018
E tudo isso sou eu
“Entro lentamente na minha dádiva
a mim mesma, esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro.
Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras – limiar de
entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer.
E se muitas vezes pinto grutas é
que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu,
sangue da natureza – grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde
se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela
sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno.
Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? espantosa,
espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura
tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo
aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e
pelas paredes. Entre as pedras, o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos
desde a Pré-História, através de mortes e nascimentos, pareceriam bestas
ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na
penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado de sonho quando pinto uma gruta ou
te escrevo sobre ela – de fora dela vem o tropel de dezenas de cavalos soltos a
patearem com cascos secos as trevas, e do atrito dos cascos o júbilo se liberta
em centelhas: eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecerá.”
Clarice Lispector,
Água viva, 1973
domingo, 1 de abril de 2018
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