“Quando chegam os dias claros, de sol quente, quando a nossa
alma, ofegando, sente a natureza despertar, já então não suportamos mais os
presídios circunvagados, as levas! E a liberdade que ferve alhures, de que
outros participam, torna-se o nosso desejo lancinante. Nessa estação do ano,
quando a primeira cotovia desfere o seu canto, começa por toda a Rússia, assim
como na Sibéria, a marcha dos vagabundos. É então que os filhos de Deus
abandonam as prisões e se internam nas florestas. Livres dos processos maçantes,
dos fossos, das cadeias e das chibatadas, vagueiam a Deus dará, por onde lhes
apraz, por onde se sentem mais livres, comendo e bebendo o que Deus lhes joga,
dormindo à noite nos bosques ou nas planícies, sem cuidados, sem regulamentos,
como pássaros sob o olhar da Providência, apenas dando ‘boa noite’ às estrelas
do firmamento. Nada de ilusões: muitíssimas vezes é duro estar a serviço do
general Cuco; passa-se fome, urge ser esperto; às vezes se fica mais de vinte e
quatro horas sem ver um pedaço de pão, é preciso se esconder de todo o mundo,
roubar, assaltar; uma vez ou outra cortar, até mesmo, uma garganta. ‘O colono é
como uma criança: o que vê, pega’, diz um ditado siberiano. Esse provérbio se
ajusta muito mais ao modo de ser dos andarilhos. É raro que sejam bandidos, mas
comumente roubam, e isso mais por necessidade do que por cupidez. É quase
impossível eles mudarem de vida. Muitos voltam de novo à vagabundagem, depois
que saem do presídio e quando a caminho das lavouras coloniais. Supor-se-ia que
essa nova condição de colonos os contentasse; mas não; atrai-os qualquer coisa
mais adiante; têm de caminhar.”
(Dostoiévski, em Recordações
da Casa dos Mortos)
P.S.: Já me despeço da obra e, daqui a alguns dias, ela
viajará de novo para minha estante, aguardando paciente um momento de saudade.
Despedir-se de um livro, e de seus personagens, do seu cheiro, do seu modo de
ver o mundo, é como se despedir de um amigo que vai embora. É como livrar-se de
um abrigo que foi seu, e só seu, por alguns instantes. É como deixar uma
lembrança de lado, sabe aquela lembrança de infância que a gente esquece quando
cresce? É como quebrar um laço, para criar outros, inclusive com esta obra
mesmo que se vai. Algumas obras nunca vão. Mas a convivência se perde; o levar na
mochila para todo canto que se vá. Pois chega a última página, a última página
adiada. E o livro termina. O mundo acaba. Os personagens seguem seu rumo, sem o
leitor no encalço. E este conhece outros mundos, pois há sede, desejo, a fome
de quem viaja. Ler é como ser vagabundo em tempos de primavera.
(outros trechos da obra aqui e aqui).
(outros trechos da obra aqui e aqui).
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