quarta-feira, 13 de novembro de 2013


“Quando chegam os dias claros, de sol quente, quando a nossa alma, ofegando, sente a natureza despertar, já então não suportamos mais os presídios circunvagados, as levas! E a liberdade que ferve alhures, de que outros participam, torna-se o nosso desejo lancinante. Nessa estação do ano, quando a primeira cotovia desfere o seu canto, começa por toda a Rússia, assim como na Sibéria, a marcha dos vagabundos. É então que os filhos de Deus abandonam as prisões e se internam nas florestas. Livres dos processos maçantes, dos fossos, das cadeias e das chibatadas, vagueiam a Deus dará, por onde lhes apraz, por onde se sentem mais livres, comendo e bebendo o que Deus lhes joga, dormindo à noite nos bosques ou nas planícies, sem cuidados, sem regulamentos, como pássaros sob o olhar da Providência, apenas dando ‘boa noite’ às estrelas do firmamento. Nada de ilusões: muitíssimas vezes é duro estar a serviço do general Cuco; passa-se fome, urge ser esperto; às vezes se fica mais de vinte e quatro horas sem ver um pedaço de pão, é preciso se esconder de todo o mundo, roubar, assaltar; uma vez ou outra cortar, até mesmo, uma garganta. ‘O colono é como uma criança: o que vê, pega’, diz um ditado siberiano. Esse provérbio se ajusta muito mais ao modo de ser dos andarilhos. É raro que sejam bandidos, mas comumente roubam, e isso mais por necessidade do que por cupidez. É quase impossível eles mudarem de vida. Muitos voltam de novo à vagabundagem, depois que saem do presídio e quando a caminho das lavouras coloniais. Supor-se-ia que essa nova condição de colonos os contentasse; mas não; atrai-os qualquer coisa mais adiante; têm de caminhar.”

(Dostoiévski, em Recordações da Casa dos Mortos)


P.S.: Já me despeço da obra e, daqui a alguns dias, ela viajará de novo para minha estante, aguardando paciente um momento de saudade. Despedir-se de um livro, e de seus personagens, do seu cheiro, do seu modo de ver o mundo, é como se despedir de um amigo que vai embora. É como livrar-se de um abrigo que foi seu, e só seu, por alguns instantes. É como deixar uma lembrança de lado, sabe aquela lembrança de infância que a gente esquece quando cresce? É como quebrar um laço, para criar outros, inclusive com esta obra mesmo que se vai. Algumas obras nunca vão. Mas a convivência se perde; o levar na mochila para todo canto que se vá. Pois chega a última página, a última página adiada. E o livro termina. O mundo acaba. Os personagens seguem seu rumo, sem o leitor no encalço. E este conhece outros mundos, pois há sede, desejo, a fome de quem viaja. Ler é como ser vagabundo em tempos de primavera. 

(outros trechos da obra aqui e aqui).

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