Gastei um dia inteiro para ler um conto de Clarice. Tive que
sorvê-lo por partes. Bastam-me algumas páginas e estou abatido. Abatido como
numa guerra, ou feito carne. É de carne que me faço. Carne e espírito. Clarice
desvenda os dois, por isso o domingo inteiro para lhe ler um único conto
dividido, por mim, em três partes. Preciso de tempo para respirar, ir a outros
lugares. Clarice me sufoca com seus dedos duros e rijos. Sufoca minha palavra
na garganta e só o que me resta é esperar o conto terminar para que eu a pronuncie.
Minha palavra é um gemido perplexo de ah, clarice. Quem desvendará o seu espírito e a sua carne?
O conto: Os desastres
de Sofia.
O livro: A Legião
Estrangeira (1964).
A autora: Clarice.
“De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e
para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas?
Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o
lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para
soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer,
eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos
que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto,
tanto – uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se
aconchegarem um no outro para amar e dormir.”
Em tempo: assim como este conto é dos melhores, esta
entrevista também ocupa os mesmos patamares: