“Vi na televisão paisagem do Nordeste. Lá o Brasil tem
história, vira país antigo. Moramos no lugar mais bobinho de Minas, nunca
acharam uma cerâmica, um ferro de senzala nesta minha cidade. Cheira a Deus a
velhice dos recém-nascidos, cheiram a sarcófago, a eternidade, os adoráveis
nenéns. A matéria é eterna? Ser é tão absurdo quanto não ser. Graça passa mal
quando pensa em infinito. Diante de mistério tão avassalador, não sei onde
pendurar este casículo. Abel me contou que estava atravessando o pontilhão da
mina e cruzou com o Pardal que lhe implorou: oi, oi, deixa eu passar a mão no
seu pinto, oi, oi, deixa, deixa, só um pouquinho, oi. Isto aconteceu e não pode
ficar sobrando na história das civilizações, senão a engrenagem enguiça, o eixo
da terra se inclina e o sentido último de tudo – o que interessa – se perde e
aí, oi, oi, loucura, danação eterna, sofrimento inenarrável, palavra que meu
pai adoraria, como adorava inabalável. Mudava-lhe o semblante. Meus exames estão
ótimos. Estou disposta para um monte de coisas, escrever o que me cair da
telha, trabalhar na catequese, viajar o Nordeste – projeto mais remoto por
causa do avião –, ao norte de Minas, a lugares antigos, escrever um auto onde
precisarei de luzes vermelhas e comprar uma coisa de ouro para mim. É preciso
dar graças. Os pobres? Sou eu.”
(Adélia Prado, em Quero minha mãe, 2005)
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