(desfile do bloco Galo da Madrugada, Recife, Pernambuco, 1978)
“Natal, 8 de fevereiro
de 1978
Dona Maria,
Lembra
quando chegava o carnaval e a senhora mandava a gente pra igreja de S. Efigênia
ouvir o pároco dizer pra tapar os olhos, os ouvidos e o nariz pra Satã não
infiltrar na gente? Ele dizia que o capeta tinha sido solto propositadamente por
Deus pra testar os homens, as mulheres e, principalmente, as crianças.
Acabada
a via-sacra, cadê que a garotada queria sair da igreja? Ficávamos todos
embolados na porta. De vez em quando um valente se jogava no incerto no maior
carreirão. E quem tinha ido com a mãe, ganhava vinte irmãos agarrados na barra
da saia dela. Uma vez eu saí e nem dei dez passos e um grupo de gatinhas
pulando e jogando lança-perfume virou a esquina logo na minha frente. Ah, mãe
pra que? Eu corri até em casa sem coragem de olhar pra trás, esperando que as
filhas de Lúcifer (tinham rabos, eu vi!) me agarrassem de vez e
definitivamente.
Depois
perdi o medo do carnaval, ou melhor, o carnaval acabou. Nunca mais vi o povo
pintando o capeta no meio da rua. O carnaval passou para a clandestinidade e só
se brinca hoje em aparelhos cercados de toda a segurança, como o Monte Líbano.
Ano
passado me chamaram pra sair na Banda de Ipanema. Eu tentei. Mas, no terceiro
pulinho, olhei pra cara do povo assistindo e fiquei no maior constrangimento.
Como é que eu ia cantar e pular na frente de quem tá com fome, na frente de
quem tem filho preso, cassado ou exilado, na frente de quem tem mãe lavando
privada pra viver?
Um
folião mais experiente me aconselhou: enche a cara que você perde o medo do
povo... Eu, hein? Sei muito bem o meu lugar no topo da pirâmide social pra sair
por aí provocando a massa.
Bom,
agora estou doido pra pular, pra brincar, e de novo não vou ter coragem de
encarar o povo. Só me resta fazer um apelo ao presidente Geisel:
- Ô
presidente! Será que não dava pra libertar o povo de maneira menos gradual e
menos lenta? Dava pra soltar o povo antes do dia 5? Solta ele pra gente brincar
sem constrangimento?
Benção,
mãe?
Henfil”
(Henfil, Cartas da mãe, Ed. Codecri, Rio de
Janeiro, 1980)
(Trio Saborosa, Salvador, Bahia, 1978)
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