Trabalho como educador de língua
portuguesa, literatura e redação numa turma de nono ano, ensino médio e em
turmas de pré-ENEM e pré-concursos públicos. Hoje, cheguei em casa do trabalho um
tanto atravessado por uma experiência em sala de aula, e fui ler a coluna de
Márcia Tiburi, na Revista Cult de
junho (número 202): Falar sozinho. O
texto discute o modo de pensar autoritário, que nega e mesmo suprime qualquer
possibilidade de diálogo, e estabelece distinção entre esse regime de
pensamento e outro, democrático:
Conversar com quem opera dentro do paradigma de pensamento autoritário
torna-se um desafio para quem opera no paradigma de pensamento democrático. A
impossibilidade do diálogo constitui a vitória do pensamento autoritário. Mas
para o regime de pensamento democrático, em si mesmo voltado ao outro, em si
mesmo aberto, em si mesmo esperançoso, ele representa o experimentum crucis do conhecimento que não é apenas uma
descrição do mundo, mas uma operação de transformação do mundo.
Não
é a primeira vez que leio texto da mesma autora que problematiza a educação (nesse
caso, também a educação) – em Polifonia
do silêncio, publicado no mês de maio na mesma revista, ela evocava a
importância pedagógica do silêncio vivo (o contrário de mutismo) na sala de aula. Em Falar
sozinho, porém, a leitura me remeteu a minha experiência com os(as)
educandos(as), aquela que me trouxe atravessado para casa.
De
arquitetura simples, eu havia planejado uma aula de oficina de texto, para as
turmas do nono e primeiro ano, que funcionaria a partir do estímulo à produção
de uma síntese criativa. Os(as) alunos(as) receberiam um texto, leríamos
juntos(as), discutiríamos seu conteúdo, e depois lhes orientei para que
buscassem trechos (palavras, frases, parágrafos) que lhes tivessem
subjetivamente impressionado. Após essa seleção individual, teriam que recortar
esses trechos e reorganizá-los de modo que produzissem, ou não, algum sentido
novo. O texto deveria ser curto, poderia conter uma frase, inclusive. O
objetivo era sua participação ativa tanto na compreensão do texto original,
intrometendo-se literalmente nele, recortando-o, selecionando as melhores
partes; quanto na elaboração de um novo sentido a partir das palavras
selecionadas originalmente por outro autor(a). Nasceria, desta forma, uma
relação de coautoria do texto novo.
Os
escritos utilizados como base foram: Sobre
ser gorda e a farsa da feminilidade, de Beatriz Rodrigues, publicado
virtualmente na Revista Capitolina,
para a turma do nono ano; e o conto Tentação,
de Clarice Lispector, para a outra turma. A seleção dos textos, mais tarde
percebi, colaborou para o bom resultado da experiência, pois tanto houve uma
identificação instantânea com o assunto discutido no primeiro (o que aumenta o
interesse na leitura e no próprio desenrolar da atividade), como uma quase
garantia de bons frutos devido ao trabalho poético do segundo.
Enquanto
as aulas aconteciam, compreendi aos poucos as diversas camadas da metodologia
aplicada. Com cada aluno(a) reorganizando palavras e frases a partir de uma
orientação subjetiva, percebi que um texto contém em si infinitos outros,
infinitas possibilidades de leitura e produção de sentido – conclusão nada nova,
mas só então apreendida. Além disso, o processo de leitura me pareceu ainda
mais honesto graças à possibilidade física de recortar o texto e selecionar
apenas aquilo que lhes interessava – muitos somente compreenderam o conteúdo
original desta forma, a partir de suas partes. Sem contar, claro, o
empoderar-se enquanto ser com capacidade de escrita. Uma aluna do primeiro ano,
aparentemente desanimada no início da aula, não havia entendido o conto de
Clarice apenas com a primeira leitura. Mas, quando conseguiu produzir o seu
próprio texto sintético a partir do conto, ela, mais do que compreender o
enredo original, enxergou-se nele. Admirada, me disse no final da aula:
“Professor, eu recortei bem aleatoriamente os trechos, mas quando li, o texto
era sobre mim!”.
O
resultado foram sínteses como estas:
- Maria Victória, aluna
do nono ano & Beatriz Rodrigues, colunista da Revista Capitolina, a partir
do texto Sobre ser gorda e a farsa da
feminilidade
- Mateus Aranha, aluno
do primeiro ano & Clarice Lispector, escritora, a partir do conto Tentação
- Anne Gabrielle, aluna
do primeiro ano & Clarice Lispector, escritora, a partir do conto Tentação
A poesia e a
profunda compreensão do mundo contidas nesses textos me atravessaram após o
trabalho, me fizeram pedir abrigo em casa, tatear inconscientemente por algo só
compreendido após indicação do texto da Márcia Tiburi. No fundo, foi a esperança,
vital ao regime de pensamento democrático, o que me deixou atravessado. Sua
capacidade atestada de transformação do mundo.
Mas o que me
motiva a compartilhar essa experiência é o desejo de que todos saibam que esse regime
de pensamento não está pronto, não é uma cartilha ou um livro didático – na
minha prática em sala de aula, inclusive, percebi o quão aprisionantes são os
livros didáticos. E, por não ser tão simples como seguir qualquer matriz curricular,
é esperado que o modo de pensar aberto ao outro, ao diálogo, vacile, erre, pois
a vacilação e o erro são típicos de qualquer processo aberto a si mesmo,
honesto.
Há uma
angústia e ansiedade grandes entre educadores comprometidos com uma educação libertadora
em relação às metodologias testadas, à eficiência em dialogar, em atingir o
outro com alguma reflexão verdadeira e despertar nele(a) inquietudes subjetivas
e alguma consciência do mundo em que está. Este texto foi escrito para dizer:
calma, assumir esse papel de educador também significa assumir-se educando,
passível de erros, não exclusivo detentor de verdades, não exclusivo detentor
de conhecimento, educar justamente significa troca. Seu saber mais o do outro
formarão, enfim, o conhecimento,
resultado de uma construção conjunta. Ansiedade e angústia só acontecem devido
à falta de confiança que se tem em relação à existência do saber do outro. Confiar
que nossos alunos e alunas têm tanto a nos oferecer quanto nós a eles(as) nos
faz relaxar mais na prática educacional diária, o que alivia a pressão por eficiência
tão típica do capitalismo, além de empoderá-los(as).
Não custa
lembrar que essas contradições, erros e falta de segurança em relação a
propostas pedagógicas emancipatórias só existem porque teimamos em pensar e
praticar uma educação libertadora em um sistema que trata o aluno(a) como
produto a ser escoado para o mercado. Ou seja, na maioria das vezes não são
causados por problemas individuais, falta de competência do educador-educando,
e sim por toda a pressão estrutural existente para que sejamos os controladores
das máquinas. Resistir também envolve quedas. Conhecer-se, conhecendo o(a)
outro(a), envolve vacilações. Não admitir isso é agir segundo as metas de
eficiência impostas.
Este texto é
para que todos e todas eduquem, e permitam-se ser educados(as), com os ombros
mais relaxados, tensões mais dissipadas, silêncios mais vivos, corpos mais
abertos ao que nascerá do encontro. Precisamos, enfim, saber incorporar
tropeços. Utilizá-los como método.
Antes de acabar: saravá, Paulo Freire.
A quem interesse, o material utilizado em
sala:
Tentação, Clarice Lispector.