Odyr Bernardi
“Mas agora estou interessada pelo
mistério do espelho. Procuro um meio de pintá-lo ou falar dele com a palavra.
Mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois
um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma
mina de espelhos? Espelho não é coisa criada e sim nascida. Não são precisos
muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o
reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem
telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em que se pode mergulhar a mão
fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o espelho.
Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o
vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios.
E mal posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros.
Espelho? Esse vazio cristalizado
que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois
espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço
quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é
extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do
deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio
vibrante de um espelho.
A sua forma não importa: nenhuma
forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de
espelho é sempre o espelho todo.
Tire-se a sua moldura ou a linha
de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único
material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem
se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem
caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da
própria imagem – esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. Para isso
há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio,
sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em
simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de
reflexão levíssima, só imagem e não corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei de minha
própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que
eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa
muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal
leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio essa
pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas:
viu o espelho propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços
gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro bloco de gelo.
Espelho é frio e gelo. Mas há a sucessão de escuridões dentro dele – perceber isto
é instante muito raro – e é preciso ficar à espreita dias e noites, em jejum de
si mesmo, para poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há
dentro dele. Com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosidade
trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também, num arrepio de frio, uma
de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso
entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim
como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.
Não, eu não descrevi o espelho –
eu fui ele. E as palavras são elas mesmas, sem tom de discurso.”
Clarice Lispector, Água viva, 1973