[Kasimir Malevich,
Quadrado negro sobre fundo branco, 1918]
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público
com livro de ponto expediente protocolo e [manifestações de apreço ao senhor diretor
Estou farto do lirismo que para e
vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os
barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as
sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os
inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao
que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos
secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, [etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos
bêbedos
O lirismo dos clowns de
Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo
que não é libertação.
[Manuel
Bandeira,
Meus poemas preferidos. Edição original: 1966]
Meus poemas preferidos. Edição original: 1966]
***
FRONTEIRA
só tenho como viver se desvio.
passo me esquivando, finjo o
sorriso,
prefiro não.
se fecha tudo sobre mim:
ao menos se tivesse
terra ou mar para onde abrir o
arco
passaria noites dias imersa
em um ritmo outro que não
o desta cidade que arfa de sufoco
e calor
(sonho uma vez por semana
que moro a quarenta passos do
mar)
meu afeto todo para as janelas
os quintais os becos
o que existe ainda de espaço
deita aqui
vou ler pra você aquele poema
depois dar no pé
evaporar
quanto menos gente souber melhor
[Jéssica
Martins Costa,
Bubuia. Editora Patuá, 2017]
Bubuia. Editora Patuá, 2017]