sexta-feira, 13 de setembro de 2019

3 desvios


[Kasimir Malevich, 
Quadrado negro sobre fundo branco, 1918]


POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e [manifestações de apreço ao senhor diretor
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, [etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


[Manuel Bandeira, 
Meus poemas preferidos. Edição original: 1966]


***

FRONTEIRA

só tenho como viver se desvio.
passo me esquivando, finjo o sorriso,
prefiro não.

se fecha tudo sobre mim:
ao menos se tivesse
terra ou mar para onde abrir o arco

passaria noites dias imersa
em um ritmo outro que não
o desta cidade que arfa de sufoco
e calor

(sonho uma vez por semana
que moro a quarenta passos do mar)

meu afeto todo para as janelas
os quintais os becos
o que existe ainda de espaço

deita aqui
vou ler pra você aquele poema

depois dar no pé
evaporar
quanto menos gente souber melhor


[Jéssica Martins Costa, 
Bubuia. Editora Patuá, 2017]

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