(Bahram Hajo)
“Um dia (John calculou, mais
tarde, que devia ter sido pouco depois do seu décimo segundo aniversário),
entrou em casa e achou no chão do quarto de dormir um livro que nunca tinha
visto. Era um livro grosso, que parecia muito antigo. A encadernação tinha sido
roída pelos ratos, algumas páginas estavam soltas e amarrotadas. Apanhou-o e
olhou a primeira página; o livro intitulava-se Obras completas de William Shakespeare.
Linda estava deitada na cama,
bebericando uma xícara daquele horrível e malcheiroso mescal.
– Foi Popé quem o trouxe – disse ela
com uma voz espessa e rouca, como se fosse a de outra pessoa. – Estava numa das
arcas da Kiva do Antílope. Dizem que estava lá há centenas de anos. Deve ser
verdade, porque passei os olhos por ele e me pareceu cheio de bobagens.
Incivilizado. De qualquer modo, sempre servirá para se exercitar na leitura.
Tomou um último sorvo, pôs a
xícara no chão perto da cama, virou-se para o lado, teve um ou dois soluços e
adormeceu.
Ele abriu o livro ao acaso:
Ah! não, mas viver
No suor fétido de um leito imundo,
Mergulhado na corrupção, acariciando e fazendo amor
Por sobre a asquerosa pocilga... (Hamlet, III, 4)
As palavras estranhas
redemoinharam em seu espírito, reboando como um trovão que falasse; como os
tambores das danças de verão, se pudessem expressar-se em palavras; como os
homens cantando a Canção do Trigo, bela, bela de fazer chorar; como o velho
Mitsima pronunciando fórmulas mágicas sobre suas penas, seus bastões esculpidos
e seus pedaços de pedra e de ossos – kiathla,
tsilu silokwe silokwe silokwe. Kiai silu silu, tsithl –, mas ainda melhores
do que as fórmulas mágicas de Mitsima, porque possuíam mais sentido; porque era
a ele que se dirigiam; porque falavam, de modo maravilhoso e apenas em parte
compreensível, em fórmulas terríveis e esplêndidas, de Linda; de Linda deitada
ali e ressonando, a xícara vazia no chão ao lado da cama; de Linda e de Popé,
de Linda e de Popé.”
(Aldous Huxley. Admirável mundo novo.
Tradução: Vidal de
Oliveira.)