segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Ele abriu o livro ao acaso


(Bahram Hajo)

“Um dia (John calculou, mais tarde, que devia ter sido pouco depois do seu décimo segundo aniversário), entrou em casa e achou no chão do quarto de dormir um livro que nunca tinha visto. Era um livro grosso, que parecia muito antigo. A encadernação tinha sido roída pelos ratos, algumas páginas estavam soltas e amarrotadas. Apanhou-o e olhou a primeira página; o livro intitulava-se Obras completas de William Shakespeare.

Linda estava deitada na cama, bebericando uma xícara daquele horrível e malcheiroso mescal.

– Foi Popé quem o trouxe – disse ela com uma voz espessa e rouca, como se fosse a de outra pessoa. – Estava numa das arcas da Kiva do Antílope. Dizem que estava lá há centenas de anos. Deve ser verdade, porque passei os olhos por ele e me pareceu cheio de bobagens. Incivilizado. De qualquer modo, sempre servirá para se exercitar na leitura.

Tomou um último sorvo, pôs a xícara no chão perto da cama, virou-se para o lado, teve um ou dois soluços e adormeceu.

Ele abriu o livro ao acaso:


            Ah! não, mas viver
No suor fétido de um leito imundo,
Mergulhado na corrupção, acariciando e fazendo amor
Por sobre a asquerosa pocilga... (Hamlet, III, 4)


As palavras estranhas redemoinharam em seu espírito, reboando como um trovão que falasse; como os tambores das danças de verão, se pudessem expressar-se em palavras; como os homens cantando a Canção do Trigo, bela, bela de fazer chorar; como o velho Mitsima pronunciando fórmulas mágicas sobre suas penas, seus bastões esculpidos e seus pedaços de pedra e de ossos – kiathla, tsilu silokwe silokwe silokwe. Kiai silu silu, tsithl –, mas ainda melhores do que as fórmulas mágicas de Mitsima, porque possuíam mais sentido; porque era a ele que se dirigiam; porque falavam, de modo maravilhoso e apenas em parte compreensível, em fórmulas terríveis e esplêndidas, de Linda; de Linda deitada ali e ressonando, a xícara vazia no chão ao lado da cama; de Linda e de Popé, de Linda e de Popé.”



(Aldous Huxley. Admirável mundo novo.
Tradução: Vidal de Oliveira.)

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