(Ribs)
O filho da empregada é sempre mais velho que o nosso
filho. Mesmo quando é mais moço, é mais velho. O filho da empregada já nasceu
velho. É um menino velho. Seu sorriso triste é muito antigo. Vem da época dos
servos, dos escravos, de antes, talvez.
O filho da empregada vem de muito longe. No mínimo tem
de tomar dois ônibus até chegar à casa da patroa de sua mãe. O filho da
empregada passa grande parte de sua infância andando de ônibus. Pela janela do
ônibus ele vê a vida passando: as casas da vila, primeiro, e depois os
edifícios de apartamentos, os supermercados, as lojas. Que tesouros, nestes
lugares! O filho da empregada sabe disto porque vê televisão, na casa da
patroa, ou mesmo no quarto alugado em que mora com sua mãe. Dos alimentos deliciosos,
dos brinquedos engenhosos, das roupas finas, disto tudo sabe o filho da
empregada. Ele é um deslumbrado: admiração é um constante componente do olhar,
junto com aquela tristeza arcaica, ancestral. Mal entra na casa da patroa, o
filho da empregada já começa a se maravilhar, porque lá há sempre coisas novas:
um novo quadro na parede, um novo carro em frente à porta. Mas o filho da
empregada não gasta logo toda sua admiração; guarda-a para o instante decisivo
em que entra no quarto do filho da patroa.
O filho da empregada brinca com o filho da patroa.
Porque a patroa é democrática, é compreensiva, é humana. Mais que isto, é culta
e avançada: ela quer que seu filho brinque com o filho da empregada para que
experimente assim uma experiência nova, para que aprenda a conviver com todo
tipo de pessoa. De modo que, mal chega, o filho da empregada é conduzido por
uma mão cálida e enérgica ao quarto do filho do dono da casa. À saudação
entusiasta, responde com um tímido oi. E já está olhando para todos os lados...
Que emoção ele sente! Tudo que viu na TV, todos os
brinquedos recém-anunciados, ali estão. Coisas mecânicas e eletrônicas, jogos e
quebra-cabeças, livros de vários tipos e formatos. Agora vocês vão brincar – diz a mãe do garoto, e se vai. O filho da
empregada ali fica, imóvel, à porta do céu. O filho da patroa não parece
perceber esta hesitação. Ele quer brincar; apanha dois revólveres e vai logo
comandando, este é meu, este é teu; eu era o mocinho, tu, o bandido.
A esta distribuição de papéis o filho da empregada
nada pode objetar; é quase um destino manifesto. Aceita a arma que lhe toca, de
calibre menor e quebrada; com ela fará o melhor que pode; mas vive mal o seu
papel, o que lhe vale ásperas censuras; assim
não! Tu tinhas de morrer!
Morrer é uma coisa que o filho da empregada sabe fazer
bem; baleado, ele cai de borco e ali fica, imóvel sobre o tapete, tal como o
cadáver que um dia viu na vila em que mora. Tão bem morre que às vezes até dá
inveja ao filho da patroa. Agora eu sou o bandido, diz o garoto, e ordena que
troquem de armas.
Assim brinca, até a hora do lanche – uma torrada que o
filho da empregada, embora advertido pela mãe (olha os modos, guri), devora: é a melhor refeição de sua semana. E
depois vem TV. E às vezes acabam adormecendo, lado a lado sobre o tapete. E aí
são dois garotos dormindo. Os sonhos são diferentes, claro; mas de qualquer
maneira são sonhos, e para os fins de um final feliz podemos considerar que os
sonhos de um garoto adormecido são exatamente iguais aos sonhos de outro garoto
adormecido, não importando quem é o filho da empregada, quem é o da patroa.
(SCLIAR, Moacyr. O
filho da empregada. In: A massagista
japonesa.
Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário