domingo, 30 de novembro de 2025
Dois poemas de Cecília Meireles
segunda-feira, 17 de novembro de 2025
Um retrato
Eu mal o conheci
quando era vivo.
Mas o que sabe
um homem de outro homem?
Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo. Para quê?
Não são muitas as lembranças
que dele guardo: a aspereza
da barba no seu rosto quando eu o beijava
ao chegar para as férias;
o cheiro de tabaco em suas roupas;
o perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido
até soltar-se (alívio!)
na risada.
Falava pouco comigo.
Estava sempre
noutra parte: ou trabalhando
ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo
(tantas vezes!) de viagem.
Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia
e o trouxe para a minha casa (que infinitos
os cuidados de Dora com ele!)
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz
contra a dor, o desconforto,
a inutilidade forçada, os negaceios
da morte já bem próxima.
Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso
imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.
Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai,
o que é estar vivo.
(José Paulo Paes, Prosas seguidas de odes mínimas, 1992)
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Elogio à irmã
Minha irmã não escreve poemas
e acho que nem vai de repente começar a escrever poemas.
Puxou isso da nossa mãe, que não escrevia poemas,
e do nosso pai, que também não escrevia poemas.
Sob o teto de minha irmã me sinto segura:
o marido de minha irmã por nada no mundo escreveria poemas.
E embora isso soe repetitivo como uma litania,
nenhum dos nossos parentes se ocupa em escrever poemas.
Nas gavetas de minha irmã não existem poemas antigos,
nem na sua bolsa, poemas recém-escritos.
E quando minha irmã me convida para almoçar,
sei que não tenciona ler poemas para mim.
Faz sopas deliciosas sem premeditação.
E não derrama café sobre manuscritos.
Em muitas famílias ninguém escreve poemas,
mas se isso acontece – é raro ficar numa só pessoa.
Às vezes a poesia desce em cascatas pelas gerações,
criando turbilhões perigosos nos sentimentos mútuos.
Minha irmã pratica uma razoável prosa falada,
e toda a sua obra se limita a postais escritos nas férias,
cujo texto promete o mesmo todo ano:
que ao voltar
tudo
tudo
tudinho ela vai contar.
(Wislawa Szymborska, em "Um amor feliz". Tradução: Regina Przybycien)
terça-feira, 16 de setembro de 2025
Dois poemas de Walt Whitman
QUANDO EM TEU COLO
DEITEI A CABEÇA, MEU CAMARADA
Quando em teu colo deitei a cabeça, meu
camarada,
a confissão que fiz eu reafirmo,
o que eu te disse e a céu aberto
eu reafirmo: sei bem que sou inquieto
e deixo os outros também assim,
eu sei que minhas palavras são armas
carregadas de perigo e de morte,
pois eu enfrento a paz e a segurança
e as leis mais enraizadas
para as desenraizar,
e por me haverem todos rejeitado
mais resoluto sou
do que jamais poderia chegar a ser
se todos me aceitassem,
eu não respeito e nunca respeitei
experiência, conveniência,
nem maiorias, nem o ridículo,
e a ameaça do que chamam de inferno
para mim nada é, ou muito pouco,
meu camarada querido: eu confesso
que o incitei a ir em frente comigo
e que ainda o incito sem a mínima ideia
de qual venha a ser nosso destino
ou se vamos sair vitoriosos
ou totalmente sufocados e vencidos.
***
ÀS VEZES COM A PESSOA A QUEM AMO
Às vezes com a pessoa a quem amo
fico cheio de raiva
por medo de estar só eu dando amor
sem ser retribuído;
e agora eu penso que não pode haver amor
sem retribuição, que a paga é certa
de uma forma ou de outra.
(Amei certa pessoa ardentemente
e meu amor não foi correspondido,
mas foi daí que eu tirei estes cantos.)
(Walt Whitman, Folhas
das folhas de relva. Tradução: Geir Campos)
sábado, 2 de agosto de 2025
"Através, um durante", meu segundo livro
Nos quinze primeiros dias do mês de junho, vivi tantas novas travessias que, durante esse intervalo de tempo, eu não pude senão viver. Não consegui narrar. Na verdade, até agora, eu ainda não disse algo consistente sobre esse livro, e isso porque não consegui, simplesmente. Eu estava cuidando de apenas me movimentar. E mesmo agora, enquanto me desloco de ônibus de Pirapora em direção a Belo Horizonte, eu também sinto que não consigo dizer - ou tocar.
O que é mais curioso é que esse livro talvez seja exatamente sobre isto: o que acontece enquanto eu me desloco. Um registro íntimo das passagens. Crônicas que registram os meus pés no espaço. As janelas.
Caminhar basta, escrevo em determinado ponto do livro. Toda a sabedoria consiste em ordenar os passos, mais nada.
domingo, 20 de abril de 2025
Remix: "Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)"
“Por si, ele nunca dera uma festa. Talvez mesmo nunca tivesse apreciado uma festa completa. Manuelzão, em sua vida, nunca tinha parado, não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só. Ele Manuelzão nunca respirara de lado, nunca refugara de sua obrigação. Todo prazer era vergonhoso, na mocidade de seu tempo. Não queria que o patrão e os outros pensassem que ele estava gozando a vida. Tinha vergonha de saberem que estava lá, em sua casa, em lùademéis, casado por um divertimento.
Agora, ei, esperava alguma coisa. Agora, o que se estabelecia era a festa. Uma festa terrível. Até para fazer festa, a gente carece de estar acostumado.
Mundo grande! Mas, ainda muito maior, quando a gente podia estar em sua casa, e os outros vinham, empoeirados de sete maneiras, por estradas sertanias – e pediam um café, um gole d´água. Cada um tinha visto muita coisa, e só contava o que valesse. Ao depois, nos acabados, essa gentama se espalhava, indo-se embora. Uma festa é que devia de durar sempre sem-fim; mas o que há, de rente, de todo dia, é o trabalho. Trabalhar é se juntar com as coisas, se separar das pessôas. Boiada! Mas só para se raciocinar depois da festa.
Alegria, sim. Todos deviam de tomar divertimento. Manuelzão não sabia, nunca em sua vida tinha dansado. A festa era o a-esmo, um acontecido de muitos, os espaços, uma coisa que não se podia pegar. Assim correndo bem. Todo o mundo se associava ali, estavam gostando, pelo esperado. Mas, para Manuelzão, a festa como que se desmanchava desde as cabeceiras, alguma coisa, muito miúda, devia de estar faltando.
‘Seo Manuelzão, quem hoje está no Céu eu sei quem é: senhora sua mãe, que haverá de estar contente...’
Solta, a festa não era entendida dele Manuelzão, não correspondia às alças. Será que a vida da gente assenta bem com festa? A música, o inteirado da música, às vezes cativava: bonito como dinheiro... A música derretia o demorado das realidades. A música repartia as tristezas por todos, cada um seu quinhão. Mas dava receio. Assim a música amolecia a sustância de um homem para as lidas. Talvez ela merecesse para se ouvir de noite, em cama deitado – quando as coisas da vida, um pouco da feiúra do corriqueiro, se descascavam, e o pensamento da gente tinha mais licença. Agora, agora, porém, a festa era bobagem: a festa era impossível... A festa não existia.
Descansadamente, de um certo modo, a festa era coisa que molestava. Também, não se arma festa todo dia. Manuelzão saía de lá, queria estar mais simplificado. Mas, debaixo de tão curtas horas, e sentia que estava caído de alturas – das alturas da festa. Tudo era diferente do que devia de ser. Mesmo enquanto se festava, a gente carecia de sofrer o ramêrro dos usos, o mau sempre da vida: uns adoeciam com moléstias, outros se entristeciam, alguém tinha de cuidar das necessidades de todos, rompe reinavam as maçadas, e a gente tinha de precatar os perigos do amanhã, que subia armado contra os fundamentos de hoje. Os outros aceitavam o misturado disso, entravam nús na festa, feito fossem meninos. Mas, ele, Manuelzão, não. Não conseguia. Para ele, o apreciável das coisas tinha de ser honesto limpo, estreito apartado: ou uma festa completa, só festa, todamente – ou mas então a lida dura, esticada, sem distração, sem descuido nenhum, sem mixórdia! Mais uns enganos. Homem, não suspirava. Mesmo, competia de demonstrar cara satisfeita, não dessem de reparar e falar, desfazendo em sua bôa fama. Por pouco, quem sabe até iam dizer: – Festa de Manuelzão, todos divertem, ele não... Não queria. A festa não é pra se consumir – mas para depois se lembrar... Até para fazer festa, a gente carece de estar acostumado.
‘Então, está apreciando, que tais?’
‘Ah, seo Manuelzão, eu acho que devia de ser é uma festa só, os dias todos... Manuelzão, sua festa é bôa!’
[Remix literário feito a partir da novela "Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)", de João Guimarães Rosa, em ocasião do meu aniversário de 32 anos.]
terça-feira, 12 de novembro de 2024
Saudades de casa
"Perceber que não nos esgotamos nas posições que ocupamos é perceber que existem coisas mais importantes do que essas posições, como se poderia perceber, estando em viagem, a importância que tem para nós qualquer coisa de trivial e muito familiar. É como se precisássemos sair das posições que ocupamos para perceber não a importância dessas posições, mas a importância das coisas para além dessas posições. A vida que assim nos é mostrada é a vida para lá da nossa vida. Que haja vida em Milão enquanto não estamos lá dá-nos uma imagem disso, do tipo de burburinho que existe além de nós e que sobreviverá a nós. É nesse sentido que tomar contato com o fato de que há vida em Milão pode ser uma experiência de humildade. Sair de onde estamos faz-nos perceber que não nos esgotamos na posição que ocupamos, faz-nos perceber que existe vida do outro lado. Mas, se assim é, o que aprendemos sobre nós em lugares estranhos é acerca de nossa vida para além daquilo que nos é familiar. Talvez isso seja necessariamente assim."
(Ana Almeida, Saudades de casa,
ensaio publicado na Revista Serrote nº 17, julho de 2014)
Notas de leitura: "Olhos azuis, cabelos pretos", Marguerite Duras
Como escrever sobre um livro que é puro vazio?
Os dois personagens principais, apenas referidos como “Ele” e “Ela”, amam o mesmo homem: um estrangeiro de olhos azuis cabelos pretos.
Os dois amam um homem que se foi.
Os dois se encontram, choram, choram, lamentam cada qual a sua perda, sem saberem que compartilham o mesmo objeto de amor.
Ele a convida para passar as noites em sua casa. Ela aceita, em troca de dinheiro. Lá, eles se olham, dormem, trocam diálogos disfuncionais, não se escutam, sobretudo não se escutam, choram.
Estão à beira-mar. As ondas quebram na parede do quarto. Ela fica nua em sua frente, abaixo de uma luz central, como num teatro de um único espectador.
Eles não se tocam. Eles não se amam. Eles se amam.
Trata-se de um encontro estranho, que não serve para nada.
A ausência, a ignorância, a repetição, o esvaziamento ocupam a centralidade da narrativa. Eles amam um personagem ausente, mas tão presente em sua fantasmagoria que os faz chorar. Eles tecem para si, noite após noite, a mortalha de um amor inalcançável, que “nunca mais voltaria às praias da França”.








