Para Fernando
Pessoa, “navegar” é sinônimo de criar. O mesmo verbo para mim, mero mortal,
conserva o seu significado original: “viajar pelo mar”. Este “mar” pode ganhar
também inúmeros significados além daquele que diz sobre a sua imensidão azul:
pensamentos, um outro alguém, a mente humana, a internet, ou uma cidadezinha
qualquer. Dessa forma, Pessoa, concordo contigo. “Navegar é preciso”.
Eu tenho uma
espécie de espasmo quando conheço um novo lugar. Não, não começo a tremer ou
algo assim, mas é como se uma onda eletroqualquercoisa passasse por dentro de
mim e registrasse aquele local. Acontece sempre quando entro na casa de alguém
pela primeira vez, ou quando estou numa nova cidade. Esse “registro” funciona
para as coisas visíveis, para o ambiente como um todo. Mas ele não ocorre com
as pequenas coisas, as sutilezas de cada lugar; aqueles detalhes mínimos que
diferenciam cada canto deste mundo, que os tornam especiais.
É a neblina
que te recepciona pela manhã; as ruas estreitas e ainda em calçamento; os
postes e a arquitetura típicos de algum tempo passado; a moça brincando com o
seu bebê na janela colonial; o senhor tocando jazz na praça principal. Sutil é o ranger do assoalho de madeira
das construções antigas; é o silêncio dos museus; a varanda das casas que nos
convidam a contemplar. A charmosa falta de planejamento que produziu uma cidade
em labirinto. O contraste do semáforo, mecanismo moderno, em meio a um lugar
que parou no tempo. Lugar em que as esquinas sussurram histórias e a cultura
está no ar que se respira. Terras de amor em poesia, de vida em ladainha, do
aconchego da solidão. Onde o apito na estação de trem é o túnel que te
transporta ao passado. Onde a liberdade, tão cara, foi deixada como herança.
São de Ouro
Preto e Mariana, nas Minas Gerais, todas essas sutilezas. São todas um convite
à imersão, ao maior dos escapismos, ao navegar pleno e sereno que a história e a
arte podem proporcionar.
Somos todos muito bitolados e não
entendemos o quão complexas são as coisas. E não digo complexas no sentido de
difíceis, mas no sentido de amplas. Não existem apenas dois lados de
determinadas situações, mas vários. Infelizmente, não nos aprofundamos
suficientemente em alguns assuntos para conhecer todas essas faces – e nem é possível
conhecê-las todas em todos os casos. No entanto, é possível deixar de pensar de
forma tão mesquinha e limitada e começar a entender a grandeza das coisas.
Documentários têm
essa característica muito forte: fazer-nos enxergar além. Com 69 – Praça da luz não foi diferente. O
que pensar de mulheres, com idade avançada, que se prostituem? Por que elas
fazem isso? Falta de opção, pobreza, azar na vida? Talvez, a princípio, mas não
é só isso. A Geisa, a Silvania, a Ana Zilda, a Emília e a Claudete deste
documentário o fazem porque querem, porque gostam. Sendo assim, por que não?
É na Praça da
Luz, em São Paulo, que essas mulheres – tão surradas pela vida – trabalham,
sustentam-se e são felizes. Obviamente não dá para fazer dessa felicidade uma
regra e eu não estou levantando aqui a bandeira da prostituição. Estou apenas
satisfeito em conhecer mais um lado, inusitado talvez, mas real. Totalmente
real.
E se é assim
que elas encontram a beleza da vida e sentem prazer em vivê-la, que assim seja.
O que não devemos, pretensiosos que somos, é tentar demarcar o que é certo e o
que é errado e querer encaixar todo mundo ali. Pois é o que fazemos quando
estamos de viseiras. Quando não percebemos que todo mundo é cada um. E que cada
um ainda é muito, porque somos tanto.
Assistir
a documentários como esse é mais do que conhecer, é aprender a respeitar a
infinidade do outro, das outras, dessas mulheres – calejadas, e absolutamente dignas
– da Praça da Luz.
Como o assunto é um documentário,
hoje não irei indicar músicas, mas outro. Este se chama Dois Mundos e se trata de deficientes auditivos que fizeram transplante ou usam
aparelho e que agora podem ouvir. O mais interessante – e o raciocínio
sobre novas realidades continua aqui – é perceber que alguns deles, mesmo agora
conhecendo os sons, preferem o silêncio.