domingo, 13 de novembro de 2011

Vontade de fugir


           “ – Minha querida filha, (...) Consultei o oráculo que, como sabes, não mente nunca e dirige toda a minha conduta. Ele me ordenou que te fizesse correr o mundo. Deves viajar. (...)

            Formosante, que jamais saíra do palácio do rei seu pai e que, (...) só havia levado uma vida muito insípida na etiqueta do fausto e na aparência dos prazeres, ficou encantada com a peregrinação que iria fazer.”
(Voltaire, A princesa de Babilônia, página 38)
               

Está decretado: a vontade de fugir é sentimento universal e constante. Agora ou na Antiguidade, aqui ou na Babilônia remota, nunca estamos completamente satisfeitos com o que temos nas mãos. Queremos mais. A isso, dá-se o nome de ambição. No entanto, eu nomeio sobrevivência.

 Cansei. 

Mas não tenho do que reclamar da vida. Possuo ótima família que me ama e entende; amigos incríveis que me ouvem e riem comigo, e choram; até, quem diria, amor. Porém esse tudo que me cabe parece pouco agora. Sinto-me preso em uma gaiola enquanto a imensidão do céu lá fora me espera. O tudo já não me basta mais. 

Assim como Formosante, a Princesa de Babilônia, que apesar de ser herdeira do maior império antigo, possuir milhares de servos e riquezas a sua disposição, ser a mais bela de todas as princesas, ter tudo de que precisa, ainda assim, falta. Não sei se essa ausência inominável será preenchida um dia, mas a busca é necessária, mais do que isso, ela é vital. 

Imagino que todos estão sujeitos a essa cócega, que vira convulsão, de mudanças. O que talvez falte à maioria é coragem de abrir novos caminhos na selva que é a vida. Mudar de emprego, conhecer pessoas novas, relacionar-se com novos possíveis amores, constituir família, abandonar o casamento falido, mudar de cidade, iniciar a faculdade, viajar. 

A estagnação e o conformismo me causam medo e são também formas de morrer. Mudar é renovar o viver, que já anda tão cansado.  

Assisti a um filme, Um lugar qualquer (2010), que contava a história de Johnny Marco, ator de Hollywood, rico, bem sucedido profissionalmente, mas vazio. O filme é arrastado como a própria vida do protagonista, que quando não trabalha volta para casa, sozinho, onde fuma, bebe, faz sexo, dorme e só. Durante todo o filme espera-se que algo aconteça, mas não acontece, porque também falta algo para o Johnny. Ao final, ele abandona o seu carro de luxo e foge. O sorriso no canto dos lábios que vemos é de alívio e liberdade. 

                                (Um lugar qualquer, Sofia Coppola, 2010)


Não tenho uma Ferrari para abandonar, mas também preciso desse mesmo sorriso. Não abandonar e esquecer – quero conservar tudo até aqui – mas renovar o oxigênio, os abraços, os motivos do choro. Conhecer, quem sabe, o Vilarejo da Marisa Monte, “onde areja um vento bom”, “o mundo tem razão” e o tempo pode esperar. 

                                          (Vilarejo - Marisa Monte)

Por enquanto, estou como O elefante drummondiano, que procura um mundo novo e está “faminto de seres e situações patéticas”. O elefante nada encontra, além de hostilidade. Mas continuará a procurar. Eu e o meu elefante continuaremos. 


O elefante

Fabrico um elefante
De meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
Tirado a velhos móveis
Talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
De paina, de doçura.
A cola vai fixar
Suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
É a parte mais feliz
De sua arquitetura.
Mas há também as presas,
Dessa matéria pura
Que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
A espojar-se nos circos
Sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
Onde se deposita
A parte do elefante
Mais fluida e permanente,
Alheia a toda fraude.

Eis meu pobre elefante
Pronto para sair
À procura de amigos
Num mundo enfastiado
Que já não crê nos bichos
E duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
E frágil, que se abana
E move lentamente
A pele costurada
Onde há flores de pano
E nuvens, alusões
A um mundo mais poético
Onde o amor reagrupa
As formas naturais.

Vai meu elefante
Pela rua povoada,
Mas não o querem ver
Nem mesmo para rir
Da cauda que ameaça
Deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
As pernas não ajudem
E seu ventre balofo
Se arrisque a desabar
Ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
Sua mínima vida,
E não há na cidade
Alma que se disponha
A recolher em si
Desse corpo sensível
A fugitiva imagem,
O passo desastrado
Mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
E situações patéticas,
De encontros ao luar
No mais profundo oceano,
Sob a raiz das árvores
Ou no seio das conchas,
De luzes que não cegam
E brilham através
Dos troncos mais espessos,
Esse passo que vai
Sem esmagar as plantas
No campo de batalha,
À procura de sítios,
Segredos, episódios
Não contados em livros,
De que apenas o vento,
As folhas, a formiga
Reconhecem o talhe,
Mas que os homens ignoram,
Pois só ousam mostrar-se
Sob a paz das cortinas
À pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
Volta meu elefante,
Mas volta fatigado,
As patas vacilantes
Se desmancham no pó.
Ele não encontrou
O de que carecia,
O de que carecemos,
Eu e meu elefante,
Em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel.
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia,
De pluma, de algodão
Jorra sobre o tapete,
Qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

Carlos Drummond de Andrade

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