“ – Minha querida filha, (...)
Consultei o oráculo que, como sabes, não mente nunca e dirige toda a minha
conduta. Ele me ordenou que te fizesse correr o mundo. Deves viajar. (...)
Formosante,
que jamais saíra do palácio do rei seu pai e que, (...) só havia levado uma
vida muito insípida na etiqueta do fausto e na aparência dos prazeres, ficou
encantada com a peregrinação que iria fazer.”
(Voltaire, A princesa de Babilônia, página 38)
Está
decretado: a vontade de fugir é sentimento universal e constante. Agora ou
na Antiguidade, aqui ou na Babilônia remota, nunca estamos completamente
satisfeitos com o que temos nas mãos. Queremos mais. A isso, dá-se o nome de
ambição. No entanto, eu nomeio sobrevivência.
Cansei.
Mas não tenho
do que reclamar da vida. Possuo ótima família que me ama e entende; amigos
incríveis que me ouvem e riem comigo, e choram; até, quem diria, amor. Porém
esse tudo que me cabe parece pouco agora. Sinto-me preso em uma gaiola enquanto
a imensidão do céu lá fora me espera. O tudo já não me basta mais.
Assim como
Formosante, a Princesa de Babilônia, que apesar de ser herdeira do maior
império antigo, possuir milhares de servos e riquezas a sua disposição, ser a
mais bela de todas as princesas, ter tudo de que precisa, ainda assim, falta. Não
sei se essa ausência inominável será preenchida um dia, mas a busca é
necessária, mais do que isso, ela é vital.
Imagino que
todos estão sujeitos a essa cócega, que vira convulsão, de mudanças. O que
talvez falte à maioria é coragem de abrir novos caminhos na selva que é a vida.
Mudar de emprego, conhecer pessoas novas, relacionar-se com novos possíveis
amores, constituir família, abandonar o casamento falido, mudar de cidade,
iniciar a faculdade, viajar.
A estagnação e
o conformismo me causam medo e são também formas de morrer. Mudar é renovar o
viver, que já anda tão cansado.
Assisti a um
filme, Um lugar qualquer (2010), que
contava a história de Johnny Marco, ator de Hollywood, rico, bem sucedido
profissionalmente, mas vazio. O filme é arrastado como a própria vida do
protagonista, que quando não trabalha volta para casa, sozinho, onde fuma,
bebe, faz sexo, dorme e só. Durante todo o filme espera-se que algo aconteça,
mas não acontece, porque também falta algo para o Johnny. Ao final, ele abandona
o seu carro de luxo e foge. O sorriso no canto dos lábios que vemos é de alívio
e liberdade.
(Um lugar qualquer, Sofia Coppola, 2010)
Não tenho uma
Ferrari para abandonar, mas também preciso desse mesmo sorriso. Não abandonar e
esquecer – quero conservar tudo até aqui – mas renovar o oxigênio, os abraços,
os motivos do choro. Conhecer, quem sabe, o Vilarejo
da Marisa Monte, “onde areja um vento bom”, “o mundo tem razão” e o tempo
pode esperar.
(Vilarejo - Marisa Monte)
Por enquanto,
estou como O elefante drummondiano,
que procura um mundo novo e está “faminto de seres e situações
patéticas”. O elefante nada encontra, além de hostilidade. Mas continuará a
procurar. Eu e o meu elefante continuaremos.
O elefante
Fabrico
um elefante
De
meus poucos recursos.
Um
tanto de madeira
Tirado
a velhos móveis
Talvez
lhe dê apoio.
E
o encho de algodão,
De
paina, de doçura.
A
cola vai fixar
Suas
orelhas pensas.
A
tromba se enovela,
É
a parte mais feliz
De
sua arquitetura.
Mas
há também as presas,
Dessa
matéria pura
Que
não sei figurar.
Tão
alva essa riqueza
A
espojar-se nos circos
Sem
perda ou corrupção.
E
há por fim os olhos,
Onde
se deposita
A
parte do elefante
Mais
fluida e permanente,
Alheia
a toda fraude.
Eis
meu pobre elefante
Pronto
para sair
À
procura de amigos
Num
mundo enfastiado
Que
já não crê nos bichos
E
duvida das coisas.
Ei-lo,
massa imponente
E
frágil, que se abana
E
move lentamente
A
pele costurada
Onde
há flores de pano
E
nuvens, alusões
A
um mundo mais poético
Onde
o amor reagrupa
As
formas naturais.
Vai
meu elefante
Pela
rua povoada,
Mas
não o querem ver
Nem
mesmo para rir
Da
cauda que ameaça
Deixá-lo
ir sozinho.
É
todo graça, embora
As
pernas não ajudem
E
seu ventre balofo
Se
arrisque a desabar
Ao
mais leve empurrão.
Mostra
com elegância
Sua
mínima vida,
E
não há na cidade
Alma
que se disponha
A
recolher em si
Desse
corpo sensível
A
fugitiva imagem,
O
passo desastrado
Mas
faminto e tocante.
Mas
faminto de seres
E
situações patéticas,
De
encontros ao luar
No
mais profundo oceano,
Sob
a raiz das árvores
Ou
no seio das conchas,
De
luzes que não cegam
E
brilham através
Dos
troncos mais espessos,
Esse
passo que vai
Sem
esmagar as plantas
No
campo de batalha,
À
procura de sítios,
Segredos,
episódios
Não
contados em livros,
De
que apenas o vento,
As
folhas, a formiga
Reconhecem
o talhe,
Mas
que os homens ignoram,
Pois
só ousam mostrar-se
Sob
a paz das cortinas
À
pálpebra cerrada.
E
já tarde da noite
Volta
meu elefante,
Mas
volta fatigado,
As
patas vacilantes
Se
desmancham no pó.
Ele
não encontrou
O
de que carecia,
O
de que carecemos,
Eu
e meu elefante,
Em
que amo disfarçar-me.
Exausto
de pesquisa,
Caiu-lhe
o vasto engenho
Como
simples papel.
A
cola se dissolve
E
todo seu conteúdo
De
perdão, de carícia,
De
pluma, de algodão
Jorra
sobre o tapete,
Qual
mito desmontado.
Amanhã
recomeço.
Carlos
Drummond de Andrade
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