terça-feira, 17 de julho de 2012

Clarice, minha nova amiga


O bom escritor, que tem nos seus dedos a alma, deixa gravado em sua obra mais do que ideias e características literárias temporais: deixa, como legado, tudo o que foi, o emaranhado complexo de sentimentos e humanidade. Através das palavras mentirosas – poemas, romances, contos – encontramos verdades embaçadas, duvidosas, sobre o quem foi e o como foi aquele ser angustiado. Ele nos diz, nas entrelinhas, o que nem mesmo soube fora delas. E pela confiança em nos confessar, mesmo em sussurros tímidos, os seus segredos íntimos, tornamo-nos amigos do bom escritor – ou inimigos, dependendo do que ele nos diz e não gostamos. Certo é que, durante o tempo de leitura, é como se andássemos lado a lado com ele, numa conversa em que mais se ouve do que se fala. Permanecemos sem respostas definitivas e a obra se acaba, e ele se vai, ainda cheio de mistérios. Até o próximo livro.

E o próximo livro, de repente, são cartas. Cartas pessoais e verdadeiras. As palavras deixam de dizer mentiras, e o bom escritor, o outro confuso, finalmente se desnuda. Assim, sem roupas e figuras de linguagem que antes lhe cobriam as verdades, podemos conhecê-lo melhor, abraçá-lo com força, sem medo, sem desconfianças. Foi assim que conheci, certo dia, minha nova amiga, Clarice Lispector.

Correspondências Clarice Lispector é uma compilação de cartas da escritora organizada por Teresa Montero. Elas cobrem a vida de Clarice desde a década de 40 até 1977, quando ela falece. Nesse livro, uma descoberta, encontram-se correspondências escritas e recebidas por ela de familiares e amigos, dentre eles Fernando Sabino, Rubem Braga, João Cabral de Melo Neto. Há cartas enviadas ao então presidente da república, Getúlio Vargas, pedindo pressa e cuidado especial na concessão da tão aguardada naturalidade brasileira (Clarice nasceu na Ucrânia, mas mudou-se para o Brasil ainda bebê). Há também aquelas de cunho profissional, em que discute a edição de seus livros, direitos autorais e perspectivas de trabalho. Mas são as cartas puramente pessoais e íntimas as que mais encantam. 

Clarice, mais do que “a deusa da literatura brasileira” como titula Andréa Azulay, era uma mulher comum, contrariando os estereótipos deformados que a sua literatura implica. Muitas vezes ouvi conferirem a Clarice adjetivos como “louca”, “perturbada”, e talvez ela o seja mesmo – como todos nós o somos em nossas medidas. 

Minha nova amiga também se preocupava com vestidos, com o tempo, com a matrícula do filho na escola, com a falta de dinheiro, com as cores das paredes de sua casa. Nas suas cartas ela divide com os seus destinatários, e agora também conosco, conselhos de como escrever bem, recomendações de literatura, descrições de paisagens banais. Aliás, Clarice Lispector também é uma mulher banal. Ela teve dois filhos, um marido, do qual se divorciou, confessava-se “meio burrinha”, às vezes, e sua caligrafia parecia mesmo uma “alma feia”, como dizia. Pode sim ser a deusa da literatura brasileira, mas é terrena como todos nós.

O nosso nível de intimidade, no decorrer da leitura, no decorrer da vida dela, chega a tanto que sorrimos quando ela sorri, chateamo-nos com suas chateações, queremos ajudá-la com seus problemas e encontrar a felicidade só para entregá-la num embrulho com laço de fita. 

Quando vai chegando o final do livro, o final da vida de Clarice, o peito aperta sem querer, e pasmem, é saudade doída. A última carta recebida, um mês antes da sua morte, é um convite para recomeçar a viver. Seria irônico, mas conhecendo a verdade de Clarice Lispector, é certo que não. Ela recomeçou sua vida. E agora é borboleta, ou barata, ou tronco de árvore descendo o rio. Sensível, forte, mãe, menina. Esta é Clarice, minha nova amiga.


P.S.: Queria-lhe poder ter escrito “certas cartas”.



Trecho:

“(...) por que não se entregar ao mundo, mesmo sem compreendê-lo? Individualmente é absurdo procurar a solução. Ela se encontra misturada aos séculos, a todos os homens, a toda a natureza. E até o teu maior ídolo em literatura ou em ciência nada mais fez do que acrescentar cegamente + um dado ao problema.

Outra coisa: o que você, você individualmente, faria de especial se não houvesse a ruindade do mundo? A ausência dela seria o ideal para todos os homens, em conjunto: Para um só, não bastaria. Garanto-lhe que sempre haveria a arte de evasão e as preces e as fugas para Bach.”

(Clarice Lispector, em carta ao seu futuro marido, Maury Gurgel Valente, sem data. Livro Correspondências - Clarice Lispector, Ed. Rocco, página 23.)

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