“ – No começo, achei que era uma árvore só. Eu a vi de
longe, eu vinha caminhando e lá estava ela, enorme, toda florida, assim com
pencas de flores de todas as cores, mas acho que principalmente roxas e
amarelas, despencando até o chão. Não parecia de verdade, parecia uma coisa
desenhada, assim meio de quadro, de ilustração de história infantil, filme de
Walt Disney. Sabe Branca de Neve? –
Ela sorriu também, cruzando os braços sobre os seios tranquilizada. Ele não
percebeu. – Uma árvore assim, de fantasia. A mais bonita que eu já tinha visto
em toda a minha vida. Aí eu parei e fiquei olhando. Tinha uma coisa forte ali
me chamando e eu não conseguia ir em frente, eu devo ter hesitado muito tempo
antes de chegar cada vez mais perto, e de repente eu estava dentro dela. Não,
espera, não foi assim. Entre os ramos cobertos de flores havia uma espécie de
vão, uma fresta, uma porta, e eu fui entrando por ela até ficar dentro daquela
coisa colorida. Era escuro lá dentro. Era cheio de galhos trançados e
torturados, e muito escuro, e muito úmido, parecia assim ter feito uma grande
dor ali cravada naquele centro cheio folhas apodrecidas e flores murchas no
chão. Pelo vão, pela fresta, pela porta eu conseguia ver o sol lá fora. Mas
aquele lugar era longe do sol. Era uma coisa, uma coisa assim desesperada e
medonha, você me entende? Então pensei em sair lá de dentro imediatamente, sem
olhar para trás, mas ao mesmo tempo que queria ir embora, queria também ficar
para sempre lá, e se me descuidasse, se alguma coisa mínima em mim perdesse o
controle eu me encolheria ali naquele chão frio, olhando os galhos tão
emaranhados que não passava nunca um fio daquela luz do sol lá de fora. Eu fui
embora, eu não queria olhar para trás, mas sem querer olhei e lá estava ela de
novo como eu a tinha visto da primeira vez. Uma árvore encantada, dessas que
você pode fazer pedidos e talvez entrar num estado especial embaixo dela e ver,
como se chamam, como é mesmo? os devas, isso, os devas, as ninfas, os faunos.
Vista de fora, de onde eu estava, era uma árvore assim, com um lindo deva que
eu quase via, roxo e amarelo como as flores, meio que dançando, quem sabe
tocando flauta em volta dela. Então lembrei do escuro e achei que entendia e
sem querer formulei com dificuldade uma coisa mais ou menos assim: é daquele
emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa
beleza que joga para fora. – Ele parecia muito cansado quando parou de falar e
perguntou: - Você entende?”
Autor: Caio Fernando Abreu
Conto: Caixinha de
música
Obra: Morangos Mofados