Dois leões representados num quadro, ambos olhando para o
lado direito, lado a lado, grandes jubas, grandes olhares, grandes variações de
amarelo. Eu escrevia sobre eles. Escrevia um conto sobre leões a partir deste
quadro. No primeiro parágrafo, justificava a razão da escrita, mas depois,
pensei em apagá-lo. Ninguém precisa saber as razões da escrita. Aparentemente,
os leões eram irmãos e um confessou ao outro sua homoafetividade. O leão gay
era o mais velho. O leão mais novo não se importou com a revelação do irmão
apreensivo, continuou vivendo naturalmente, vida de bicho. Mas o leão gay ainda
guardava algum constrangimento em relação ao outro, constrangimento sem
qualquer fundamento nos fatos, já que a reação fora boa, natural, como reagem
os animais a fatos esperados, mesmo que inesperados, pouco importantes. O leão
mais velho permanece apreensivo. Apreensão transcende os fatos.
O conto se estendia, ficava cada vez melhor, e o que era
apenas a descrição de uma pintura tornava-se, a cada palavra a mais, conto para
livro. Livro que não acaba. Livro que não virá. No quadro, agora, não havia
dois leões, apenas um, de boca aberta, como em grito, ou em fala. Escrevo sobre
os limites da boca. Até certo ponto, ainda podem-se ver os dentes; deste ponto em
diante, só escuridão, o breu da boca, o abismo da boca, trevas, goela, ou não:
fronteira.
C. está na praia, também de lado, olhando o mar, sentado na
areia, sem camisa. Não estou com ele, mas posso vê-lo: meu olhar é como câmera que
foca em C., foca em mar, movimento das ondas. Ele está em paz, tão calmo, um
tanto desiludo, olhando para o mundo. Estamos no último dia do ano. Meu
olhar-câmera foca cada vez mais somente em C. num zoom lento. Tudo está acinzentado. Sua posição me faz lembrar a dos
leões no primeiro quadro. Sem me ver, C. gira seu corpo, fica em frente a mim,
eu que olho menos para o mar, menos para mar. De frente, percebo que C. está nu
e conversa com seu grande pênis mole. Diz algo como, todo ano peço esperançoso anel e tudo o que tenho, ano após ano é esta
praia, só, o que explica sua aparente desilusão. O moço começa então a
listar os pedidos para o próximo ano e, dentre os desejos, pede mais uma vez anel
e também que o seu pênis continue crescendo dois centímetros de diâmetro como
em todos os anos. C. possui metas. Meu olhar se aproxima totalmente e tudo o
que preenche minhas lentes, meu quadro, é o seu corpo, corpo branco, quase
rosado, gordo, com alguns pelos ao redor dos mamilos e na linha vertical na
direção do umbigo, caminho da perdição, caminho da felicidade.
Oito páginas de conto. Termino.
Fim de tarde, monto na bicicleta e vou até a cidade a vinte
minutos da minha, onde mora o senhor que me conta todas essas histórias que
escrevo. Ele é a fonte do texto. Não é o quadro. Não sou eu. É este senhor
agricultor que mora na zona rural da cidade a vinte minutos da minha. Fim de
tarde. Chego, sento-me, mesa de madeira, para ouvir o senhor negro, chapéu protegendo-o
do sol, contar-me histórias. Percebo que a história dos leões nunca existiu
escrita, está ali na boca do velho contando. Lamento pelo material escrito perdido,
como os pais lamentam pelos filhos que desaparecem. Ainda me lembro do limite
da boca, da praia acinzentada, da conversa com o pênis que cresce, todo ano,
dois centímetros. E só. Boas imagens na prosa esticada do velho. Nada está
salvo, travessias: sonho, oralidade, escrita.