“ – Escuta: pois é, não sei se te contei que o teatro que
estou a escrever é o teatro que consagrará as aparições, é o que tenho
denominado para consumo interno de Teatro da Aparição, melhor assim, pois basta
de personagens de carne e osso que vêm
de algum lugar e partem para outro, não, não, a partir de agora de repente
irrompem do nada e de súbito desaparecem para o nada, como verdadeiras
assombrações são transplantados vamos dizer do esquecimento para o olvido,
ninguém espera o surgimento nem o apagamento deles; estamos todos nós cansados
da previsão de tudo, pega um jornal, televisão, nos despejam previsões de chuva
sol frio calor nuvens esparsas tempo coberto terremotos tufões safra de arroz
para esse ano, basta, basta, mas não, ainda vem o time que deverá vencer o jogo
de amanhã o meteorito que cairá sobre nossas cabeças deus seja louvado não
aguento mais, só o Teatro da Aparição poderá nos salvar é mesmo no meio dessa
história toda, o espectador aqui terá sua capacidade de previsão amputada, o
que ele vê agora é uma cena banhada numa espécie de formol que a protege do
bafo das previsões cuidado com esse bafo!, pois agora teremos uma cena cujo
desenvolvimento o público não terá a menor condição de adivinhar até porque ele
é composto de ignorantes incultos burros broncos massa encefálica dormente
crânio oco o que você quiser.
Raios me revolvam a mente me disse ele incinerando tudo o
que já dissera: o que eu quero, acrescentou, e te falo isso como quem se dirige
a alguém em prece: o que eu quero para esse Teatro da Aparição é que ele nem
precise existir, no duro. Para quê?
Para que mais e mais maneiras de externar a mesma merda se o
mundo carece não de uma linguagem mas de um fato tão ostensivo na sua crueza
que nos cegue nos silencie e que nos liberte da tortura da expressão, é isso,
pronto!
Ele era um rapaz que pensava estar criando a sua poética.
Talvez estivesse, talvez não.”
(João Gilberto Noll, A céu aberto, Companhia das Letras,
1996)
Nenhum comentário:
Postar um comentário