sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Mais um pato selvagem

     (Quino)

               Uma fábula do Rubem Alves – Patos Selvagens – discorre sobre a diferenciação entre os patos selvagens e os domésticos. Os primeiros voam, enfrentam os caçadores, não possuem casa fixa, mas vivem na beleza maior: o horizonte. Os segundos não precisam enfrentar perigos, não voam, possuem lugar para morar e a comida lhes é dada pelo dono; eles vivem tranquilamente ao contrário dos selvagens. Essa distinção funciona para os patos. Mas serve também para os homens.

                As minhas últimas semanas foram de alçar vôo e enfrentar os tiros dos caçadores. Semanas de escolha entre a segurança da terra ou os riscos do ar; entre o calar-se e os gritos; entre a mesmice, fracassada, e o tentar mudar as coisas. Das duas opções prefiro as segundas. Mas de repente me vejo num mundo repleto de pessoas que preferem as primeiras.

                Os patos domésticos são maioria por aqui. Sem metáforas, as pessoas cansadas ou derrotadas que perderam a capacidade de mudar o mundo, ou seu próprio, estão por toda a parte. Estão nas ruas congestionadas, em prédios cinzentos, nas lojas procurando algo que o consumo não oferece; estão em casa vivendo por viver. Estão nas escolas também. E esse é o maior perigo de todos. 

                Educadores deveriam ensinar aos seus alunos, antes dos números, das letras ou dos átomos, as técnicas de vôo. A primeira lição seria acreditar que as asas existem, mesmo nesse “mundo enfastiado que já não crê nos bichos e duvida das coisas”, como diria Drummond. O problema é que muitos educadores não sabem ou desistiram de voar. Os seus alunos, portanto, também nunca o saberão. Eles estão fadados a se juntarem ao medíocre exército dos patos domésticos, onde também estão os seus professores. 

                Esse exército, gigantesco, nunca ganhará batalha alguma, pois não luta. Pode até estar armado em algumas ocasiões, mas quando empunha a arma para desferir o primeiro golpe contra o inimigo, hesita. Tem medo. Recua. E essa é a sua sina. A sina de milhões e milhões de pessoas emudecidas. Eles nunca mudarão o mundo, pois perderam o brilho nos olhos. Perderam a crença na utopia, e isso não é um paradoxo. A utopia pode ser, algum dia, verdade. Por que não? É nisso que acredita o exército do outro lado. 

                Os voadores por excelência são poucos. Muitos foram reprimidos pelos caçadores. Mas apesar da quantidade inferior, pertencem a eles, selvagens, as digitais que vemos no mundo. Eles as deixaram lá. 

                Todos os educadores deveriam ser patos selvagens. Corajosos. Sonhadores. Voadores. Que não têm medo do grito e de saírem das suas vidas confortáveis e cheias de hipocrisia para buscarem algo bom de fato. Na verdade, educadores ou não, todos deveríamos ser assim. O mundo seria melhor e não este. 

    Estou cansado destas razões que movem tudo: a inércia, o medo, a ignorância, a hipocrisia, a mediocridade, a futilidade, o comodismo, o egoísmo... Para aonde vamos assim? 

    Esse texto, esse desespero, esse susto de ver tal estado de coisas talvez seja só inexperiência de garoto de dezoito anos. Talvez seja só a pujança da juventude, como dizem. Mas se ser experiente é deitar a cabeça no travesseiro e se esquecer de que tudo está errado, não, quero ficar aqui onde estou. Mais um pato selvagem, que quer, pelo menos, tentar organizar esse quarto bagunçado em que vivemos. 

    A história do Rubem Alves termina com o pato selvagem, que virara doméstico por opção, com saudade de voar. Ele tenta, mas continua no chão “em segurança, gordo de barriga cheia, protegido pelas cercas”. Os seus ex-semelhantes estão lá em cima, ainda fugindo dos caçadores, mas livres. O horizonte é o quintal da casa deles. E pode ser o nosso também.

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