Uma fábula do Rubem Alves – Patos Selvagens – discorre sobre a
diferenciação entre os patos selvagens e os domésticos. Os primeiros voam,
enfrentam os caçadores, não possuem casa fixa, mas vivem na beleza maior: o
horizonte. Os segundos não precisam enfrentar perigos, não voam, possuem lugar
para morar e a comida lhes é dada pelo dono; eles vivem tranquilamente ao
contrário dos selvagens. Essa distinção funciona para os patos. Mas serve
também para os homens.
As
minhas últimas semanas foram de alçar vôo e enfrentar os tiros dos caçadores.
Semanas de escolha entre a segurança da terra ou os riscos do ar; entre o
calar-se e os gritos; entre a mesmice, fracassada, e o tentar mudar as coisas.
Das duas opções prefiro as segundas. Mas de repente me vejo num mundo repleto
de pessoas que preferem as primeiras.
Os
patos domésticos são maioria por aqui. Sem metáforas, as pessoas cansadas ou
derrotadas que perderam a capacidade de mudar o mundo, ou seu próprio, estão
por toda a parte. Estão nas ruas congestionadas, em prédios cinzentos, nas
lojas procurando algo que o consumo não oferece; estão em casa vivendo por
viver. Estão nas escolas também. E esse é o maior perigo de todos.
Educadores
deveriam ensinar aos seus alunos, antes dos números, das letras ou dos átomos,
as técnicas de vôo. A primeira lição seria acreditar que as asas existem, mesmo
nesse “mundo enfastiado que já não crê nos bichos e duvida das coisas”, como
diria Drummond. O problema é que muitos educadores não sabem ou desistiram de
voar. Os seus alunos, portanto, também nunca o saberão. Eles estão fadados a se
juntarem ao medíocre exército dos patos domésticos, onde também estão os seus
professores.
Esse
exército, gigantesco, nunca ganhará batalha alguma, pois não luta. Pode até
estar armado em algumas ocasiões, mas quando empunha a arma para desferir o
primeiro golpe contra o inimigo, hesita. Tem medo. Recua. E essa é a sua sina.
A sina de milhões e milhões de pessoas emudecidas. Eles nunca mudarão o mundo,
pois perderam o brilho nos olhos. Perderam a crença na utopia, e isso não é um
paradoxo. A utopia pode ser, algum dia, verdade. Por que não? É nisso que
acredita o exército do outro lado.
Os
voadores por excelência são poucos. Muitos foram reprimidos pelos caçadores.
Mas apesar da quantidade inferior, pertencem a eles, selvagens, as digitais que
vemos no mundo. Eles as deixaram lá.
Todos
os educadores deveriam ser patos selvagens. Corajosos. Sonhadores. Voadores.
Que não têm medo do grito e de saírem das suas vidas confortáveis e cheias de
hipocrisia para buscarem algo bom de fato. Na verdade, educadores ou não, todos
deveríamos ser assim. O mundo seria melhor e não este.
Estou cansado
destas razões que movem tudo: a inércia, o medo, a ignorância, a hipocrisia, a
mediocridade, a futilidade, o comodismo, o egoísmo... Para aonde vamos assim?
Esse texto,
esse desespero, esse susto de ver tal estado de coisas talvez seja só
inexperiência de garoto de dezoito anos. Talvez seja só a pujança da juventude,
como dizem. Mas se ser experiente é deitar a cabeça no travesseiro e se
esquecer de que tudo está errado, não, quero ficar aqui onde estou. Mais um
pato selvagem, que quer, pelo menos, tentar organizar esse quarto bagunçado em
que vivemos.
A história do
Rubem Alves termina com o pato selvagem, que virara doméstico por opção, com
saudade de voar. Ele tenta, mas continua no chão “em segurança, gordo de
barriga cheia, protegido pelas cercas”. Os seus ex-semelhantes estão lá em
cima, ainda fugindo dos caçadores, mas livres. O horizonte é o quintal da casa
deles. E pode ser o nosso também.
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