A rua continua a mesma. E as árvores em seus lugares.
Escrevo para conhecer outras avenidas, outros pastos, outras paisagens. Escrevo
para abandonar (mesmo que por poucos instantes) a rua que ainda é a mesma. Onde
fui feliz. Onde brinquei quando menino. E já era meia-noite, e minha avó
chamava, e eu, ignorando, brincava. Hoje, há silêncio. E eu escrevo. A rua.
Ainda é a mesma? Eu. Ainda sou o mesmo? O que muda, eu ou a rua?
sábado, 28 de setembro de 2013
sábado, 7 de setembro de 2013
Diário de silêncios
Há exatos quatro meses, passei um tempo da minha vida
acampado na beira de uma rodovia. Foram nove dias. Estava com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em um acampamento de resistência. O
objetivo dos acampados é conseguir a posse de um latifúndio improdutivo, que
fica logo atrás de onde eles estão, a Fazenda Fortaleza de Sant´Anna. Fiquei
apenas nove dias, mas as famílias que ali residem estão há mais de dois anos.
Essa é a vida real. De todo dia. Essa
experiência fez parte do XVI Estágio Interdisciplinar de Vivência da Zona da
Mata Mineira, o EIV.
Durante meu tempo de vivência fiz um diário, no qual relatei
sentimentos, narrei silêncios, descrevi personagens. Personagens reais. Durante
os quatro meses que se passaram pós-EIV, sempre me foi muito duro reler minhas
anotações, lembrar-me de tudo. As vozes,
os rostos, os cheiros, as cores. Me lembro de tudo com muita verdade. E penso
em voltar, em reencontrar aquela gente, que também sou eu. Reencontrar-me descalço,
nu por inteiro, aprendendo com o Movimento a ter desconfiança do mundo e fé na
força do povo.
Nunca tinha conseguido reler todo o diário, bastava um
parágrafo e a dor voltava, esmagando o meu dia, a minha madrugada. Fechava o
diário. Largava de lado.
Mas uma experiência assim não serve para ficar guardada na
estante. É preciso reabrir o caderninho e contá-la de novo. Contar para quem
quiser ouvir, inclusive para mim, que há gente morando na beira da estrada,
porque não tem terra e casa. Sabe casa com parede e tapete na porta? É preciso
contar ao mundo que o sistema segrega e o capitalismo mata. Mas é preciso
contar também que há fé e há resistência. Que existem pessoas com brilho nos
olhos, ainda que cansados. São dois anos de acampamento. Três de movimento. É
preciso contar ao mundo a história do povo. E é por isso que, corajoso, resolvi
reabrir o diário e reviver tudo aquilo, por mais que as lembranças ainda não
tenham se assentado. EIV é digestão constante.
O acampamento se chama Dênis Gonçalves e fica na Zona da
Mata Mineira, próximo às cidades de Goianá e Juiz de Fora. É foco de
resistência do MST, lugar onde a bandeira vermelha trepida e os sonhos existem.
Resistem.
Há pouco tempo, saiu a emissão de posse para o Dênis. Isso
quer dizer que os trabalhadores deixarão o acampamento para, enfim, entrarem
legalmente na Fazenda e constituírem o maior assentamento do estado de Minas
Gerais. Já é hora de levantar paredes, colocar tapete na porta, plantar,
colher, trabalhar na terra e do chão ver nascer os frutos.
É tempo de florir flores vermelhas,
reabrir o diário,
contar uma história.
Ou várias.
terça-feira, 3 de setembro de 2013
domingo, 1 de setembro de 2013
Recordações da Casa dos Mortos
“Em Tobolsk vi, uma vez, um detento chumbado na muralha por uma
corrente de menos de dois metros. Estava acorrentado por causa dum crime
nefando cometido já depois de sua vinda para a Sibéria. Alguns desses detentos
há que ficam assim durante cinco, dez anos. Trata-se quase sempre de pena
imposta a latrocidas. Além desse, vi um outro que parecia de boa proveniência
social. Fora, antes, funcionário não sei de qual repartição, seu modo de falar
era cortês e resignado, e o seu sorriso untuoso. Mostrou-nos suas cadeias,
explicou-nos como escolhia o jeito melhor para dormir no seu catre. Devia ter
sido uma boa ave de rapina! Por costume aturam aquilo com paciência, parecendo,
por fim, indiferentes. No fundo, porém, pensam na vez de se verem livres das cadeias.
E para quê? Ora, para quê! Para, deixando aquela masmorra de abóbada baixa e de
muralhas espessas, irem para um presídio com um pátio onde possam andar... Só,
e nada mais. Liberdade, rua, estrada? Nunca mais! Cada um deles sabe muito bem
que os que são acorrentados à bossagem ficarão perpetuamente no presídio, até a
morte, com algemas nos pulsos e nos tornozelos. Sabe disso e, todavia, sua mais
bela esperança, seu mais ardente desejo é que o tempo de viver chumbado às
lages passe logo. Como suportaria estar assim, acorrentado durante cinco ou
mais anos, se não embalasse essa esperança? Morreria ou endoideceria. Sem tal
crença, como resistir?”
(Dostoiévski,
Recordações da Casa dos Mortos, 1861)
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