Há exatos quatro meses, passei um tempo da minha vida
acampado na beira de uma rodovia. Foram nove dias. Estava com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em um acampamento de resistência. O
objetivo dos acampados é conseguir a posse de um latifúndio improdutivo, que
fica logo atrás de onde eles estão, a Fazenda Fortaleza de Sant´Anna. Fiquei
apenas nove dias, mas as famílias que ali residem estão há mais de dois anos.
Essa é a vida real. De todo dia. Essa
experiência fez parte do XVI Estágio Interdisciplinar de Vivência da Zona da
Mata Mineira, o EIV.
Durante meu tempo de vivência fiz um diário, no qual relatei
sentimentos, narrei silêncios, descrevi personagens. Personagens reais. Durante
os quatro meses que se passaram pós-EIV, sempre me foi muito duro reler minhas
anotações, lembrar-me de tudo. As vozes,
os rostos, os cheiros, as cores. Me lembro de tudo com muita verdade. E penso
em voltar, em reencontrar aquela gente, que também sou eu. Reencontrar-me descalço,
nu por inteiro, aprendendo com o Movimento a ter desconfiança do mundo e fé na
força do povo.
Nunca tinha conseguido reler todo o diário, bastava um
parágrafo e a dor voltava, esmagando o meu dia, a minha madrugada. Fechava o
diário. Largava de lado.
Mas uma experiência assim não serve para ficar guardada na
estante. É preciso reabrir o caderninho e contá-la de novo. Contar para quem
quiser ouvir, inclusive para mim, que há gente morando na beira da estrada,
porque não tem terra e casa. Sabe casa com parede e tapete na porta? É preciso
contar ao mundo que o sistema segrega e o capitalismo mata. Mas é preciso
contar também que há fé e há resistência. Que existem pessoas com brilho nos
olhos, ainda que cansados. São dois anos de acampamento. Três de movimento. É
preciso contar ao mundo a história do povo. E é por isso que, corajoso, resolvi
reabrir o diário e reviver tudo aquilo, por mais que as lembranças ainda não
tenham se assentado. EIV é digestão constante.
O acampamento se chama Dênis Gonçalves e fica na Zona da
Mata Mineira, próximo às cidades de Goianá e Juiz de Fora. É foco de
resistência do MST, lugar onde a bandeira vermelha trepida e os sonhos existem.
Resistem.
Há pouco tempo, saiu a emissão de posse para o Dênis. Isso
quer dizer que os trabalhadores deixarão o acampamento para, enfim, entrarem
legalmente na Fazenda e constituírem o maior assentamento do estado de Minas
Gerais. Já é hora de levantar paredes, colocar tapete na porta, plantar,
colher, trabalhar na terra e do chão ver nascer os frutos.
É tempo de florir flores vermelhas,
reabrir o diário,
contar uma história.
Ou várias.
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