[Carlos Nejar, Somos poucos, 1976]
domingo, 23 de dezembro de 2018
segunda-feira, 3 de dezembro de 2018
sábado, 24 de novembro de 2018
Tentativa de resenha: “Paterson”, Jim Jarmusch, 2017
(Paterson, Jim Jarmusch, 2017)
Marco,
em Paterson, filme sobre o cotidiano de um motorista de ônibus que
também escreve poemas, as coisas estão sempre projetadas umas sobre as outras.
Os sonhos de Laura, esposa do protagonista, logo de manhã se projetam sobre a
realidade: quando ela sonha com gêmeos, Paterson passa a vê-los pela cidade. Os
próprios gêmeos, inclusive, são a projeção um do outro, uma estrutura
aparentemente espelhada. Além disso, quando o motorista observa sua caixa de
fósforos, logo em seguida uma descrição dela é feita num de seus poemas. Assim,
da mesma maneira que a realidade se projeta no texto, como neste último caso, o
texto se projeta na realidade: logo que terminamos de ler os versos sobre os
fósforos, aparece escrita num muro a palavra “fire”.
O cachorro do casal é
representado em pinturas pela casa, do mesmo modo como os cereais circulares
que Paterson come antes do trabalho transformam-se em estampas geométricas
pintadas por sua esposa. Aliás, ela reproduz suas estampas em diferentes
plataformas: cortinas, vestidos, cupcakes. No detalhe, até o nome do
protagonista é o nome da cidade, ou o nome da cidade é o nome do protagonista,
além de ser o título da película. Quando o personagem escreve, imagens se sobrepõem
na tela, junto com as palavras. Por fim, a cachoeira, tema do poema da
garotinha, de que você tanto gosta, projeta-se no pequeno quadro na parede da
casa, projeta-se, enorme, na paisagem da cidade.
Esse mecanismo de sobreposição
também pode ser lido como a aproximação entre dois planos distintos, duas
diferentes esferas de sentido (o sonho e a realidade, a realidade e o texto, o
indivíduo e a cidade). Em literatura, a esse movimento dá-se um nome: metáfora.
Portanto, assim como Paterson, o motorista, Paterson, o filme, também escreve,
dessa vez com imagens. Quem disse que cinema não faz poema?
Ah,
morar junto é também
projetar-se.
Visto suas roupas, você
veste as minhas,
deitamos um em cima do
outro sobre a cama,
por vezes meus planos
de decoração são também os seus,
sem que a gente saiba.
A todo momento
aproximamos duas diferentes esferas de sentido:
eu e você.
Quem disse que esta
casa não faz metáfora?
sábado, 22 de setembro de 2018
Nossos dramas quotidianos
Fall, Bas Jan Ader
Nossos dramas quotidianos
não contam
na milícia dos dias.
Iguais às nuvens,
as noites vêm e vão
num redondel ou tubo.
E os revezes são núcleo.
Qualquer gota
nos filtra.
O extravio
é a nossa identidade.
Nosso número.
Tudo sucede
a tudo
e nós, humanos,
não nos sucedemos.
Nos sucedem.
E o sangue
é a cal
do sangue,
sua província.
Só vinga
o que adubamos
com folhas de abandono.
Tábuas de rebelião.
Tábuas de dor,
nós somos.
Tábuas, tábuas
no universo inviável.
Tudo sucede
a tudo.
Sem vestígio.
Insubmissos,
nosso amor
remonta aos astros.
E é o desequilíbrio.
Carlos Nejar, Somos poucos, 1976
sexta-feira, 6 de julho de 2018
Nos escritórios não há amigos
Edward Hopper, Noite no escritório
“Nos escritórios não há amigos; há
pessoas que se veem todos os dias, que se exasperam juntas ou de forma isolada,
que fazem piadas e as celebram, que trocam suas queixas e transmitem seus
rancores, que falam mal da Diretoria como um todo e adulam cada diretor em
particular. A isso se chama convivência, mas só por ilusão a convivência pode
chegar a se parecer com a amizade. Em tantos anos de escritório, confesso que
Avellaneda é meu primeiro afeto verdadeiro. O resto tem a desvantagem da reação
não-escolhida, do vínculo imposto pelas circunstâncias. Que tenho em comum com
Muñoz, Méndez e Robledo? Apesar disso, às vezes damos boas risadas juntos,
bebemos algo, tratamos uns aos outros com simpatia. No fundo, cada um é um
desconhecido para os outros, porque nesse tipo de relação superficial se fala
de muitas coisas, mas nunca das vitais, nunca das verdadeiramente importantes e
decisivas. Creio que é o trabalho que impede outro tipo de confiança; o
trabalho, essa espécie constante de martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico.
Algumas vezes, um deles (especialmente Muñoz) se aproximou para iniciar uma
conversa comunicativa de verdade. Começou a falar, a delinear com franqueza seu
autorretrato, a sintetizar os termos de seu drama, desse drama módico, parado,
desconcertante que envenena a vida de cada um, por mais comum que um homem se
sinta. Mas sempre há alguém que chama no balcão. Durante meia hora ele tem de
explicar a um cliente moroso sobre a inconveniência e as penalidades da mora,
discute, grita um pouco, seguramente se sente envilecido. Quando volta à minha
mesa, me olha, não diz nada. Faz o esforço muscular correspondente ao do
sorriso, mas comissuras se voltam para baixo. Então apanha uma planilha velha,
amassa-a com a mão, de uma maneira meticulosa, e depois a atira no cesto de
papel. É um simples substitutivo; o que não serve mais, o que ele lança ao
cesto, é a confidência. Sim, o trabalho amordaça a confiança. Mas também existe
a gozação. Todos somos especialistas na gozação. A disponibilidade de interesse
pelo próximo precisa ser gasta de algum modo; caso contrário, ela fica
reprimida e aí vem a claustrofobia, a neurastenia, e sei lá o que mais. Já que
não temos nem a coragem nem a fraqueza suficientes para nos interessarmos
amistosamente pelo próximo (não aquele próximo nebuloso, bíblico, sem face, mas
sim o próximo com nome e sobrenome, o próximo mais próximo, o que escreve à
escrivaninha aqui em frente e me alcança o cálculo dos juros para que eu o
revise e dê o visto), já que renunciamos voluntariamente à amizade, bem, pois
então vamos entrar em um clima de gozação com esse vizinho que por oito horas
está sempre vulnerável. Além disso, a gozação proporciona uma espécie de solidariedade.
Hoje o candidato é este, amanhã aquele, na sequência serei eu. A vítima das
chacotas pragueja em silêncio, mas logo se resigna, sabe que isso é apenas
parte do jogo, que em um futuro próximo, talvez dentro de uma ou duas horas,
poderá escolher a forma de desforra que melhor coincida com sua vocação. Os
gozadores, por sua vez, sentem-se solidários, entusiasmados, fulgurantes. Cada
vez que um deles acrescenta à gozação um tempero, os outros festejam, trocam
sinais, sentem-se excitados pela cumplicidade, só falta se abraçarem aos gritos
de urra. E que alívio é dar umas risadas, inclusive quando é preciso conter o
riso porque lá no fundo assomou o gerente com sua cara de melancia, que
desforra contra a rotina, contra a papelada, contra essa condenação
representada por estar oito horas enredado em algo que não tem nenhuma
importância, que só faz engordar as contas bancárias desses inúteis que pecam
pela simples razão de estarem vivos, de se deixar viver, desses imprestáveis
que acreditam em Deus apenas porque ignoram que faz muito tempo que Deus já
deixou de acreditar neles. A gozação e o trabalho. No fim das contas, em que se
diferenciam? E que trabalho nos dá ser gozadores, que cansaço. E que gozação é
esse trabalho, que piada de mau gosto.”
Mario Benedetti, A trégua,
1960, L&PM Pocket.
quarta-feira, 13 de junho de 2018
Esta é uma era de fragmentos
Thaisa Figueiredo
“Esta é uma era de fragmentos. Umas poucas estrofes, algumas páginas, um capítulo aqui e ali, o começo de um romance ou o final de outro são iguais ao melhor de qualquer tempo ou autor. Mas podemos encarar a posteridade com um punhado de folhas soltas, ou pedir aos leitores desses dias vindouros, com a totalidade da literatura à frente, que peneirem nossos imensos montes de entulho para achar nossas minúsculas pérolas?
[...] Esta é uma época esgotada e
estéril, repetimos; devemos olhar para o passado com inveja. Ao mesmo tempo,
este é um dos primeiros dias bonitos da primavera. À vida, de modo geral, não
falta cor. O telefone, que interrompe as mais sérias conversas e logo corta as
observações de mais peso, não deixa de ter seu romantismo. E o falar à toa de
pessoas sem esperança de imortalidade, que assim podem dizer tudo o que pensam,
dispõe não raro de um cenário de luzes, ruas, casas, pessoas belas ou grotescas
que há de entrelaçar-se para sempre ao momento.
[...] Nosso otimismo é, pois, em
grande parte instintivo. Provém do dia bonito e da conversa e do vinho; provém
do fato de a vida, ao levantar dia a dia esses tesouros, sugerir dia a dia mais
do que pode a loquacidade expressar, que, por mais que admiremos os mortos,
preferimos a vida como ela é. Há no presente alguma coisa que não queremos
trocar, ainda que viver em qualquer das eras passadas se oferecesse à nossa
escolha. E a literatura moderna, com todas as suas imperfeições, tem esse mesmo
poder de retenção sobre nós e exerce o mesmo fascínio. Ela é como um parente
que não recebemos bem e atormentamos diariamente com críticas, mas do qual,
afinal de contas, não podemos prescindir. Tem a mesma cativante característica
de ser o que também somos, o que fizemos e onde estamos vivendo, em vez de ser
outra coisa, por grandiosa que fosse, vista pelo lado de fora e alheia a nós.”
Virginia Woolf, Como impressionar um contemporâneo,
1923.
Retirado do livro O valor do riso e outros ensaios,
Virginia Woolf, Cosac Naify, 2014. Tradução: Leonardo Fróes.
sexta-feira, 1 de junho de 2018
Mas agora estou interessada pelo mistério do espelho
Odyr Bernardi
“Mas agora estou interessada pelo
mistério do espelho. Procuro um meio de pintá-lo ou falar dele com a palavra.
Mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois
um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma
mina de espelhos? Espelho não é coisa criada e sim nascida. Não são precisos
muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o
reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem
telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em que se pode mergulhar a mão
fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o espelho.
Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o
vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios.
E mal posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros.
Espelho? Esse vazio cristalizado
que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois
espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço
quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é
extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do
deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio
vibrante de um espelho.
A sua forma não importa: nenhuma
forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de
espelho é sempre o espelho todo.
Tire-se a sua moldura ou a linha
de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama.
O que é um espelho? É o único
material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem
se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem
caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da
própria imagem – esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. Para isso
há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio,
sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em
simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de
reflexão levíssima, só imagem e não corpo. Corpo da coisa.
Ao pintá-lo precisei de minha
própria delicadeza para não atravessá-lo com minha imagem, pois espelho em que
eu me veja já sou eu, só espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa
muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal
leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio essa
pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas:
viu o espelho propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços
gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro bloco de gelo.
Espelho é frio e gelo. Mas há a sucessão de escuridões dentro dele – perceber isto
é instante muito raro – e é preciso ficar à espreita dias e noites, em jejum de
si mesmo, para poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há
dentro dele. Com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosidade
trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também, num arrepio de frio, uma
de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso
entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim
como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.
Não, eu não descrevi o espelho –
eu fui ele. E as palavras são elas mesmas, sem tom de discurso.”
Clarice Lispector, Água viva, 1973
quinta-feira, 31 de maio de 2018
segunda-feira, 21 de maio de 2018
Tentativa de orelha: "Bubuia", Jéssica Martins Costa
Antes de tudo, há uma intimidade
perdida. Após, percorre-se uma trilha, onde se escuta apenas um eco primordial:
saber reconhecer/ o que é forte. Caminho
onde quem vai, volta, apagando rastros; há uma sensação de iminente
atropelamento; poemas se perdem e o coração cai, quebra. A continuidade é o
mergulho.
Jéssica Martins Costa escreve
como quem tenta recuperar essa intimidade, mas agora com o leitor – tão vago
quanto aquele que se foi. Lemos como se fôssemos nós no escuro, deitados numa
cama; nós, de costas serenamente viradas. Também acusa quem insiste em dizer você.
São poemas que caminham, só pés e
sapatos, sem seus próprios passos. Escrita de preencher a falta, rasurar a
memória, recosturar ao corpo o desejo. E a continuidade é o mergulho.
Escrevo esta leitura como quem
também deseja apagar seus rastros. Se puder, apenas siga. Lembrar teu nome te
basta.
Bubuia
Jéssica Martins Costa
Ed. Patuá
2017
62 páginas
terça-feira, 1 de maio de 2018
segunda-feira, 30 de abril de 2018
domingo, 15 de abril de 2018
E tudo isso sou eu
“Entro lentamente na minha dádiva
a mim mesma, esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro.
Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras – limiar de
entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer.
E se muitas vezes pinto grutas é
que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu,
sangue da natureza – grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde
se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela
sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno.
Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? espantosa,
espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura
tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo
aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e
pelas paredes. Entre as pedras, o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos
desde a Pré-História, através de mortes e nascimentos, pareceriam bestas
ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na
penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado de sonho quando pinto uma gruta ou
te escrevo sobre ela – de fora dela vem o tropel de dezenas de cavalos soltos a
patearem com cascos secos as trevas, e do atrito dos cascos o júbilo se liberta
em centelhas: eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecerá.”
Clarice Lispector,
Água viva, 1973
domingo, 1 de abril de 2018
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Já vou
Odyr Bernardi
“Tenho que interromper porque –
eu não disse? eu não disse que um dia ia me acontecer uma coisa? Pois aconteceu
agora mesmo. Um homem chamado João falou comigo pelo telefone. Ele se criou no
profundo da Amazônia. E diz que lá corre a lenda de uma planta que fala.
Chama-se tajá. E dizem que sendo mistificada de um modo ritualista pelos
indígenas, ela eventualmente diz uma palavra. João me contou uma coisa que não
tem explicação: uma vez entrou tarde da noite em casa e quando estava passando
pelo corredor onde estava a planta ouviu a palavra ‘João’. Então pensou que era
sua mãe chamando-o e respondeu: ‘já vou’. Subiu mas encontrou a mãe e o pai
ressonando profundamente.”
Clarice Lispector, Água viva, 1973
sábado, 3 de fevereiro de 2018
Porque parece que se tem de ser terrivelmente explícita
“Escrevo-te à medida de meu
fôlego. Estarei sendo hermética como na minha pintura? Porque parece que se tem
de ser terrivelmente explícita. Sou explícita? Pouco se me dá. Agora vou
acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo para
sempre. Eu, que nunca sou adequada.
Voltei. Estou pensando em
tartarugas. Uma vez eu disse por pura intuição que a tartaruga era um animal
dinossáurico. Depois é que vim ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou
pintar tartarugas. Elas me interessam muito. Todos os seres vivos, que não o
homem, são um escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita
matéria-prima – it – e formaram-se então os bichos. Para que uma tartaruga? Talvez
o título do que estou te escrevendo devesse ser um pouco assim e em forma
interrogativa: ‘E as tartarugas?’ Você que me lê diria: é verdade que há muito
tempo não penso em tartarugas.”
(Clarice Lispector, Água viva, 1973)
quinta-feira, 4 de janeiro de 2018
Minha órfã
Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.
Sei que esperas por mim,
Mas eu não quis te olhar
Porque me debrucei sobre o mito de outras,
Porque não me sabes dar, pobre amiga,
O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.
Roxelane, Roxelane:
Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
Boca sem frescura e sem expressão,
Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,
Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.
Roxelane, Roxelane:
Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
Conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,
Enquanto eu recolherei para sempre
A tua, a minha e a miséria de outros,
Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.
(Murilo Mendes, As metamorfoses, 1944)
Assinar:
Postagens (Atom)