quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Minha órfã



Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.

Sei que esperas por mim,
Mas eu não quis te olhar
Porque me debrucei sobre o mito de outras,
Porque não me sabes dar, pobre amiga,
O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.

Roxelane, Roxelane:
Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
Boca sem frescura e sem expressão,
Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,
Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.

Roxelane, Roxelane:
Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
Conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,
Enquanto eu recolherei para sempre
A tua, a minha e a miséria de outros,
Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.



(Murilo Mendes, As metamorfoses, 1944)

Nenhum comentário:

Postar um comentário