No fim do século XIX,
iniciando sua carreira científica, o jovem Sigmund Freud comprometeu-se com o
estudo dos benefícios da cocaína – alcaloide da planta de coca, advinha da América
do Sul – em diversos usos terapêuticos: estimulante, anestésico, supressor da
dependência de morfina, entre outros. A substância ainda era praticamente desconhecida
na Europa e Freud foi um dos seus mais dedicados divulgadores. O cientista a
estudava com o entusiasmo de quem sabe estar diante de uma descoberta valiosa.
Movia-o o desejo de entrar para a história da ciência, previsão feita ainda em
sua infância: uma curandeira disse para sua mãe que ele seria uma personalidade
importante e esse destino antecipado lhe perturbou durante a vida inteira ao
ponto de, antes de morrer, ainda estar insatisfeito consigo, por pensar não ter
cumprido a profecia.
Freud acreditava que o
legado que deixaria para a ciência seriam seus estudos sobre a cocaína. Porém,
com o avançar dos experimentos em amigos, pacientes e, principalmente, em si
mesmo, a substância revelou-se capaz de criar dependência química tanto quanto
a morfina e extrapolou os limites clínicos. Ainda em fins do século XIX, Freud
foi responsabilizado moralmente pelo alastramento do cocainismo. Sua pesquisa
foi um fracasso. E, não obstante as tentativas de se livrar desse passado, seu
inconsciente já havia sido marcado por ele.
Este livro de
não-ficção é dividido em três partes: na primeira, percorre a história do
cientista jovem e sua ligação com a cocaína; na segunda, compila todos os
artigos científicos de sua autoria sobre o assunto e, na última, contextualiza
o impacto da substância no final do século XX, abordando questões econômicas,
sociais e políticas. O autor foi muito feliz ao incluir essa terceira parte,
apresentando as consequências, um século depois, do entusiasmado estudo. Outro
ponto a ser ressaltado é o fato de que, embora seja livro específico da área
psicanalítica, sua linguagem, por não ser tecnicista, pode ser apreendida sem
dificuldade por leigos.
Para além das questões
biológicas e químicas, interessou-me especialmente a análise da história dos
fracassos. Um fracasso específico que, não obstante ter sido silenciado,
reverbera até hoje. Impossível não se perguntar se o contexto atual de tráfico
e criminalidade envolvendo a cocaína seria diferente se um cientista
pretensioso não tivesse um dia se maravilhado por seus efeitos clínicos. Ou,
ainda, o quão subaproveitadas para fins médicos são algumas substâncias
consideradas ilícitas pelo Estado. O que há para além do tabu das drogas?
Um affair freudiano - Os escritos de Freud sobre a cocaína
Oscar Cesarotto
1989
Ed. Iluminuras
131 páginas
Avaliação: 3/5