sábado, 16 de fevereiro de 2013

Cartas da mãe



Este documentário utiliza as cartas trocadas entre o Henfil, cartunista, e sua mãe, D. Maria, para falar sobre o Brasil, sobre a ditadura e sobre a resistência. Henfil era artista, militante e filho. Ele “tinha pressa em relação ao Brasil”. Ele queria mudar o mundo. Este é um documentário sobre biscoitos duros.


São Paulo, 26 de dezembro de 1979
Mãe,

Aqui estou eu, em mais um Natal, fazendo desta carta meu sapato colocado na janela. Eu fui bom este ano, mãe. Eu acho que eu fui muito bom. Eu fui solidário com todos os meus irmãos Betinhos; fiz greve com todos os Lulas; quebrei Belo Horizonte como todos os peões; voltei para o país que me expulsou como todos os Juliões; dei murro em ponta de faca como todos os Marighelas; cantei as prostitutas, as Mulheres de Atenas; joguei pedras na Geni como todos os Chicos Buarques; aspirei cola como todos os pixotes. Fui negro, homossexual, fui mulher, fui Herzóg, Santo Dias e Lida Monteiro. Fui, então, muito bom este ano, mãe. Aqui está minha carta-sapato. Vou fechar os olhos, vou dormir depressa, esperando que meia-noite todos entrem pela minha janela, me façam chorar de alegria. Que eu quero viver.

A benção,

Henfil. 

O homem; as viagens



O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão.
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
civiliza a Lua
coloniza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus
vê o visto – é isto?
idem
idem
idem

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a difícil dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de conviver.

(Drummond – sempre ele, no meu poema preferido dos últimos tempos.) 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Este texto é uma tentativa

Vida escancarada. Nos beijamos no meio do mundo e eu me senti exatamente assim: no centro do mundo inteiro, dançando ao som da Orquestra Brasileira de Música Jamaicana, como se a Jamaica fosse logo ali e o mundo inteiro fosse vizinho de si mesmo. Nossos corpos se beijaram, mas foi assim que me senti: transando em espírito.

Minha cor preferida é verde, a sua é vermelho, atualmente. Minha cor preferida é verde desde sempre, pois pouco mudo, desde os Power Rangers sou assim: esverdeado. Sua cor preferida se altera conforme o humor, a estação, assim como também mudam seu cabelo, seu personagem, sua fantasia. Libra e Touro. O que isso significa? Não confio nos astros, confio em mim: apontando para a cabeça, como se fôssemos apenas cabeça e não peito e não sangue e não coração bombeando sangue. A cidade é linda durante a noite. Cada luz dessas é uma pessoa, ou várias, com suas crises e seus ataques repentinos de riso. Não estamos sozinhos.

Os beijos e carícias são parte de um legado. Te beijando assim, em público, leãozinho, me sinto carregando nos ombros (e nos lábios) a história e as tardes de domingo e as manhãs de segunda daqueles que se beijaram e acabaram machucados, ou mortos. Me sinto responsável. Te beijo por eles. Te beijo por nós. Nesta noite grande (e cada toque é uma oração para que ela não se acabe), te beijo pela gente, pelo meu coração cansado de estar só, por nossas crises que podem ter fim. Hoje.

Na sua camisa, o desenho de uma atriz que desconheço. Não é sua preferida, eu sei, mas gostaria de gravar-lhe o nome, o nome da testemunha. Você me falou duas vezes, fiquei envergonhado de perguntar pela terceira, confessando a semi-embriaguez de instantes passados. Alice alguma coisa, talvez? Me envie uma carta informando. Por pombo-correio.

Minha cor preferida é verde,

a sua é vermelho, atualmente.

Libra e Touro.

E a cidade.

E os beijos.

E o carnaval.

E a noite:

quenãoseacabe.

Existe uma cidade em Minas que se chama Passa Tempo. Os homens não entendem a linguagem das mulheres. 500 contos por uma perereca: não é assim, cara, não é assim. A garota com um colar de pérolas está mais bonita do que um milhão de mulheres. Viva o amor. Não somos um desperdício, estamos nos aproveitando. O amor não é espetacularia. Deus salve a minha alma. Sou de Manaus. Sejam muito felizes, vocês. Existe uma cidade em Minas: Passa Tempo.

Gosto de te ver em fragmento, como no seu quarto, ao lado do espelho grande, pequenos espelhos. Enxergar-te em pedaços, em cacos. Gosto de ver apenas seu olho, um quarto do seu cabelo, abaixo os olhos e vejo seu sorriso de menino, leãozinho. É muito triste fazer teatro. No palco, não tenho outra vida, é a minha vida mesmo, de verdade, sem amarras, sem texto decorado. Mascarada é a realidade. Pessoas são personagens. Frida Kahlo.

Vamos nos reencontrar antes da Espanha, antes do Almodóvar? Tenho que ir. O nome do disco é Transa. Caetano é o nome do meu gato. Ele sumiu, ingrato. Sinto saudade. Pra quê rimar amor e dor? Hein? Hein? Tenho que ir. A noite escapa. Mas sabe qual é o segredo? A noite não acabou. Para a fitinha de Senhor do Bonfim, fiz três vezes o mesmo pedido: não acordar, não acordar, não acordar. O dia vem chegando, leãozinho, ele não é vermelho, nem verde, nem negro: ele é rosa. Rosa de arame farpado.

O segredo é que não sou do Amazonas, sou de Passa Tempo, moro em BH, cuide dessa tosse, pare de fumar, quando for para a Espanha me leve junto contigo, não suma no mundo, o dia vem chegando, mas a noite não acabou, não vou acordar, sussurrando:

                                              n  ã   o    v     o     u      a     c    o    r     d      a     r.

Você fez tudo diferente e bom. 

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Separação



Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos
das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.


O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.
(...)

(Affonso Romano de Sant´anna)