quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Quer me animar, Lúcio?


“Minha impaciência chega a ser tão grande que às vezes me dói. Assim não tenho gostado verdadeiramente da Itália, como não poderia gostar verdadeiramente de nenhum lugar; sinto que há entre mim e tudo uma coisa, como se eu fosse daquelas pessoas que têm os olhos cobertos por uma camada branca. Sinto horrivelmente ter que dizer que esse véu é exatamente minha vontade de trabalhar e de ver demais. Um dia desses pensei com tristeza de como é genial a tortura da mediocridade… Sinto tanto, tanto ser tão fraca. Gostaria de tal, de tal forma poder trabalhar sem parar. Mas não consigo, as coisas me vêm esparsas – e além disso eu de tal modo desconfio de mim, com medo de escrever facilmente com a ponta dos dedos, que nada faço. Quer me animar, Lúcio? Não que eu mereça ser animada, mas mereço como qualquer pessoa ter os pés em cima da terra. Eu queria fazer uma história cheia de todos os instantes, mas isso sufocava o próprio personagem. Acho mesmo que meu mal é querer ter todos os instantes. Que eu estou idiota, você não precisa dizer, sei bem...”


(Trecho de carta enviada a Lúcio Cardoso por Clarice Lispector. Correspondências – Clarice Lispector. Organização: Tereza Montero, 2002. Ed. Rocco: Rio de Janeiro.) 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Literatura Brasileira Contemporânea

Estou lendo Verônica Stigger. E um bom texto é medido, entre outras coisas, pela capacidade que tem de nos levar a outros textos, outras articulações do pensamento. Ou seja, o bom texto é aquele que não nos aprisiona nele próprio. E isso é sabido. 

Quando leio a literatura brasileira contemporânea, neste caso o "Opisanie Swiata", fico pensando o tempo inteiro em quanto desconhecemos, no geral, nossa própria literatura, do nosso próprio tempo. E isso me angustia. Pensando nisso, mas consciente de que não vou resolver sozinho o problema, criei um álbum no facebook em que indico esse tipo de leitura. As postagens podem ser acompanhadas aqui. 

As margens de ação individual são limitadas, sei. Mas, é o que temos (ainda). 

Boa leitura.;) 


terça-feira, 6 de outubro de 2015

A paisagem mudara


“Bopp (…) voltou a se ocupar com a paisagem. Os campos pareciam ser sempre os mesmos. Os mesmos animais. As mesmas poucas e pequenas casas. As mesmas pessoas. Bopp se lembrou de que, quando era pequeno e o levavam a viajar de trem, seu pai o fazia contar as vacas que via no pasto. Isso o entretinha a viagem toda. Mas também o angustiava, porque ele não conseguia enumerar todas e se perdia na soma. Era só terminar de contar as que estavam mais próximas à linha do trem que já perdia de vista as que ficavam em segundo plano. Se começava a contagem pelas do fundo, não obtinha melhor resultado: quando chegava às da frente, a frente não era mais a mesma. A paisagem mudara. O trem já tinha andado e deixado aquelas vacas para trás. Então ele se desesperava. Queria recomeçar do zero, mas não era mais possível, não tinha como fazer o trem voltar. Quando se perdia mais de uma vez, quando se perdia duas ou três vezes, ele, que até aquele instante ria com seu riso livre de menino, se botava a chorar. Chorava alto porque não sabia mais por quantas vacas tinha passado e queria provar ao pai que era capaz de contar todas as vacas que visse na estrada. Mas nunca conseguia. Nessas horas, seu pai sorria e o abraçava apertado. Dizia para fingirem que a viagem começava naquele ponto em que estavam e propunha que os dois reiniciassem juntos a contagem das vacas. Quando eles se perdiam ou quando não eram rápidos o bastante para contar todas, os dois riam, Bopp chorava de tanto rir, e, quando davam por si, já tinham chegado ao destino.”

(Verônica Stigger, Opisanie Swiata.
Cosac Naify Editora, 2013)