quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

adeus, 2015 ou: podem desabar!

“Afasta-se a passos largos e, pelo jeito de balançar a cabeça, imagino que está sorrindo. Atravessa o jardim como um soldado em dia de desfile, a mochila ao lado, as meias desabando, podem desabar! toque-toque, toque-toque. Abriu o portão com um gesto desabrido, heroico, gesto de quem assume não o seu caminho, prosaico demais, imagine, mas o próprio destino.”


Lygia Fagundes Telles, As meninas, 1973

a pergunta intermitente


- Laerte

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

São Paulo se anuncia

"Acordo com alguém próximo informando ao telefone que estamos na Marginal Tietê, próximo à rodoviária. Recoloco os óculos, abro a cortina e observo o espaço lá fora. Ônibus se locomove lento. A senhora a minha frente também observa, mas comenta com a outra ao lado o quanto o trânsito é verdadeiramente caótico, não é só matéria do Brasil Urgente. Passa um ônibus intramunicipal ao nosso lado, abarrotado de pessoas. A senhora não deixa de tecer comentário semelhante, precedido de um olha lá, olha lá, como se, nas savanas africanas, visse um guepardo, ou, se num deserto, visse uma miragem. Gente espremida dentro de ônibus parece ser atração turística em São Paulo." 

(Clique na ilustração abaixo para ler a crônica na íntegra. Crônica de um arauto que sumiu.)


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015


“Já pensei até em me matar. Nos últimos anos, quando a solidão me deixava bem esbugalhado e os dias se repetiam a ponto de eu pensar que entrara sem perceber numa câmara de torturas, sim, nesses dias pensei em me matar. Só não queria incomodar ninguém com o estorvo do meu corpo. Eu tinha de descobrir um jeito de acabar comigo deixando o meu corpo para sempre escondido dos demais. Em noites desses períodos era comum passar diante do meu corpo na guarda do paiol um vulto imponente, meio azulado, que ao passar costumava parar um pouco e se inclinar de leve como para me reverenciar igual à coreografia corriqueira dos chineses, e eu gostava de imaginar que aquele era o ser que eu seria dali a algum tempo, um vulto meio bizarro pela madrugada a intimidar sem muito efeito os entes que ficassem acordados como eu por tantos anos.”


(João Gilberto Noll, A céu aberto, 1996, Companhia das Letras)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Alguma crônica deve ser de amor

"Escorregou pelo chão quente o seu corpo suado. Já estava só de cueca – sol o obrigara. Ventilador não supera meu fogo, repetia a si mesmo, enquanto escorria. Em sua cabeça, via-se como uma massa gelatinosa, grudenta. Era o calor, repetia. Tudo culpa do calor. Se não houvesse essa quentura, tudo seria melhor, eu estaria correndo por campos verdejantes como na clássica cena de A Noviça Rebelde. Se não houvesse mormaço, quarto não teria se tornado este abrigo subterrâneo contra bombardeios. Abrigo inútil. Vento ainda entra pelas frestas e me arranca o couro. Derreto.

Assim, derretido, lembrou-se da mensagem que recebera pela manhã. Um amigo distante, daquela outra vida, dizendo: Olá, tudo bem? Sinto sua falta. O que tem feito? Não se esqueça de que existo. E como esquecer, seu filho da puta? pensou, mas não respondeu a mensagem prontamente. Levantou-se da cadeira, gastou a manhã com outras hesitações e até conseguiu ignorar o atordoamento. Mas nada escapa ao meio-dia. Nada consegue fugir do sol a pino. E, então, como esquecer este ostracismo? Esse silêncio todo que separou nossos corpos intocados. Se não fosse a porra do seu silêncio, talvez eu tivesse insistido na outra vida, fumando maconha e pensando que o mundo pode ser melhor. Se não fosse seu namoro de adolescência – seis anos! Crescemos, amadurecemos juntos. Sei, sei, sei. "

(Leia a crônica na íntegra clicando na imagem abaixo)


segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Noticiário: mês 11

- Saiu esta entrevista com os membros do Clube Literário Tamboril, daqui de Pirapora. Na ocasião, apareço e declamo um poema de “Escorre”. Não deixem de ver, a edição está sensível e bonita.

- Fernanda Xavier fez esta colagem com outro poema de “Escorre”. Ela diz por mim tudo que calo, propositalmente. Grato, Fê.



 - Fui à Balada Literária em São Paulo. Me perdi, suei um cado, mas descobri que escritores, além de vaidosos, também podem ser gentis e abraçáveis. Grato pelos abraços.

Inté.


Foto: Marina Bitten


Dom Quixote (também) hesita

“E considerando eu isto bem, estou capaz de afirmar que me pesa no íntimo da alma de haver abraçado este exercício de cavaleiro andante em tempos tão detestáveis como estes em que vivemos agora; porque, ainda que eu sou daqueles a quem não há perigo que meta medo, contudo muitas vezes me sinto receoso de que a pólvora e o chumbo me roubem a ocasião de tornar-me famoso e conhecido pelo valor do meu braço e pelos fios da minha boa espada em todos os ângulos da terra; (...)

Em todos os que o escutavam sobreveio grande pena, vendo que um homem, ao parecer, dotado de muita inteligência e que sabia discorrer com tanto acerto nas cousas de que tratava, perdia completamente a tramontana logo que falava sobre a negregada e desgraçadíssima tolice da cavalaria andante.”


(Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, 1605)



terça-feira, 24 de novembro de 2015

Chão

"O filho mais velho voltou para casa, mãe já não estava. Os filhos mais novos cuidavam de tudo: limpavam, cozinhavam, criavam o rumo do resto. O filho mais velho entrou pela casa com olhos assustados – susto inadmitido –, olhos assustados de quem entra num lugar novo, onde nunca tinha pisado. Parecia criança em loja de brinquedo, mas triste. Os filhos mais novos trataram-no com naturalidade, era o combinado tácito, sem acordo verbal ou escrito. Todos entendiam que ele, distante desde que não havia mais mãe, carecia deste novo pisar na velha casa: todos agora precisam reconhecer-se."

(clique na ilustração abaixo para continuar lendo a crônica que escrevi para O salto. a ilustra é do Vinícius Ribeiro. e o texto é sobre luto engasgado. de novo.)


domingo, 15 de novembro de 2015

"Ogunhê Ogum
Guerreiro Deus
do conflito

Por uma poética
política da
guerra

Como única
conexão possível
entre

os anjos caídos
de Babel

Laroyê Exu
Mensageiro Deus
dos interstícios

Do caos corpo
campo de batalha
que sou"

- Iago Passos


Fotografia: Aparício Mansur

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Leitores de jornais

"O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho. (...)

A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres. (...)

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.

Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil."

(Trechos do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade, 1924)


(Tarsila do Amaral, Morro da favela, 1924)



quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Quer me animar, Lúcio?


“Minha impaciência chega a ser tão grande que às vezes me dói. Assim não tenho gostado verdadeiramente da Itália, como não poderia gostar verdadeiramente de nenhum lugar; sinto que há entre mim e tudo uma coisa, como se eu fosse daquelas pessoas que têm os olhos cobertos por uma camada branca. Sinto horrivelmente ter que dizer que esse véu é exatamente minha vontade de trabalhar e de ver demais. Um dia desses pensei com tristeza de como é genial a tortura da mediocridade… Sinto tanto, tanto ser tão fraca. Gostaria de tal, de tal forma poder trabalhar sem parar. Mas não consigo, as coisas me vêm esparsas – e além disso eu de tal modo desconfio de mim, com medo de escrever facilmente com a ponta dos dedos, que nada faço. Quer me animar, Lúcio? Não que eu mereça ser animada, mas mereço como qualquer pessoa ter os pés em cima da terra. Eu queria fazer uma história cheia de todos os instantes, mas isso sufocava o próprio personagem. Acho mesmo que meu mal é querer ter todos os instantes. Que eu estou idiota, você não precisa dizer, sei bem...”


(Trecho de carta enviada a Lúcio Cardoso por Clarice Lispector. Correspondências – Clarice Lispector. Organização: Tereza Montero, 2002. Ed. Rocco: Rio de Janeiro.) 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Literatura Brasileira Contemporânea

Estou lendo Verônica Stigger. E um bom texto é medido, entre outras coisas, pela capacidade que tem de nos levar a outros textos, outras articulações do pensamento. Ou seja, o bom texto é aquele que não nos aprisiona nele próprio. E isso é sabido. 

Quando leio a literatura brasileira contemporânea, neste caso o "Opisanie Swiata", fico pensando o tempo inteiro em quanto desconhecemos, no geral, nossa própria literatura, do nosso próprio tempo. E isso me angustia. Pensando nisso, mas consciente de que não vou resolver sozinho o problema, criei um álbum no facebook em que indico esse tipo de leitura. As postagens podem ser acompanhadas aqui. 

As margens de ação individual são limitadas, sei. Mas, é o que temos (ainda). 

Boa leitura.;) 


terça-feira, 6 de outubro de 2015

A paisagem mudara


“Bopp (…) voltou a se ocupar com a paisagem. Os campos pareciam ser sempre os mesmos. Os mesmos animais. As mesmas poucas e pequenas casas. As mesmas pessoas. Bopp se lembrou de que, quando era pequeno e o levavam a viajar de trem, seu pai o fazia contar as vacas que via no pasto. Isso o entretinha a viagem toda. Mas também o angustiava, porque ele não conseguia enumerar todas e se perdia na soma. Era só terminar de contar as que estavam mais próximas à linha do trem que já perdia de vista as que ficavam em segundo plano. Se começava a contagem pelas do fundo, não obtinha melhor resultado: quando chegava às da frente, a frente não era mais a mesma. A paisagem mudara. O trem já tinha andado e deixado aquelas vacas para trás. Então ele se desesperava. Queria recomeçar do zero, mas não era mais possível, não tinha como fazer o trem voltar. Quando se perdia mais de uma vez, quando se perdia duas ou três vezes, ele, que até aquele instante ria com seu riso livre de menino, se botava a chorar. Chorava alto porque não sabia mais por quantas vacas tinha passado e queria provar ao pai que era capaz de contar todas as vacas que visse na estrada. Mas nunca conseguia. Nessas horas, seu pai sorria e o abraçava apertado. Dizia para fingirem que a viagem começava naquele ponto em que estavam e propunha que os dois reiniciassem juntos a contagem das vacas. Quando eles se perdiam ou quando não eram rápidos o bastante para contar todas, os dois riam, Bopp chorava de tanto rir, e, quando davam por si, já tinham chegado ao destino.”

(Verônica Stigger, Opisanie Swiata.
Cosac Naify Editora, 2013)  

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Menos uma definição absoluta, mais o início de uma discussão



“(…) O material do poeta é a vida, dissemos. (…) É que a vida é para todos um fato cotidiano. Ela o é pela dinâmica mesma de suas contradições, pelo equilíbrio mesmo de seus polos contrários. (…)

Mas para o poeta a vida é eterna. Ele vive no vórtice dessas contradições, no eixo desses contrários. Não viva ele assim, e transformar-se-á certamente, dentro de um mundo em carne viva, num jardinista, num floricultor de espécimes que, por mais belos sejam, pertencem antes a estufas que ao homem que vive nas ruas e nas casas. Isto é: pelo menos para mim. E não é outra a razão pela qual a poesia tem dado à História, dentro do quadro das artes, o maior, de longe o maior número de santos e de mártires. Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos domésticos, a filha pobre na família das artes, e um elemento de perturbação da ordem dentro da sociedade tal como está constituída.

Diz-se que o poeta é um criador, ou melhor, um estruturador de línguas e, sendo assim, de civilizações. Homero, Virgílio, Dante, Chaucer, Shakespeare, Camões, os poetas anônimos do Cantar de Mío Cid vivem à base dessas afirmações. Pode ser. Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani – que se fosse vivo seria multimilionário como Picasso – podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram antes e depois dele. Mas eu acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o seu filé em troca de um soneto ou de uma balada. Por isso me parece que a maior beleza dessa arte modesta e heroica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida. Seu único patrão é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e tranquilidade.”


(Vinícius de Moraes, na crônica Sobre a poesia, publicada no livro Para viver um grande amor, 1966, Livraria José Olympio Editora: Rio de Janeiro)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Estou à venda



"Escorre", o tal livro de poemas artesanal, está à venda. Algumas más línguas (dentro da minha cabeça) dizem que também estou me vendendo. Aquiesço.

O preço é: doze reais (mais frete, se for o caso).

Para quem se interessar, favor, mandar mensagem inbox manifestando interesse e informando endereço. Aqui, meu facebook. Ou podem pedir por e-mail: douglasdeoliveiratomaz@gmail.com

Alguns informes:

a) a última semana, de tão bizarra, me fez aceitar o crescimento natural do meu cabelo. sem podas até segunda ordem.

b) várias mínimas coisas não andam dando certo, como: zíper da mochila, costura do sapato, calças jeans, microsoft office – tudo ao mesmo tempo. definitivamente, não sei lidar com as mínimas coisas.

c) no último sábado pela manhã, um personagem meu, caminhoneiro, bateu à minha porta. tivemos um diálogo.

d) na ocasião, ele me encontrou com o cabelo em pasta, devido à hidratação. me controlei e não pedi qualquer desculpa.

té.



p.s. I.: mais do que deus, ou o destino, ou o acaso, a Crise, esta palavra desgastada, ganhou agora o poder de tudo justificar.

p.s. II: como pôde ser constatado, além de não saber costurar calças e zíperes, ainda não aprendi como escrever texto publicitário.


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Adélio Brasil, o costureiro

Entrevistar Adelinho foi muito fácil. A começar pela permissão íntima de se usar o nome no diminutivo; fácil também pelo ambiente confortável de sua casa, pelo vento de março que agitava as árvores da rua e abraçava nossa conversa, pela generosidade com que ele interrompia a entrevista para oferecer suco, cerveja, vinho, qualquer carinho que o valha. Sobretudo fácil, porque todas as perguntas foram respondidas antes mesmo de terem sido feitas. Bastava ouvir. E ouvir, quando o emissor é um exímio contador de histórias, que prolonga ou encurta palavras no momento certo, aumenta ou diminui a entonação da voz no intuito de ênfase, pausa, sabe o peso que cada palavra tem, enfim, ouvir nesse caso é fácil, muito fácil.
 
(trecho de entrevista produzida por Davi e por mim para O Salto. leia-a na íntegra clicando na foto abaixo. divirta-se.)

http://osaltobarranqueiro.blogspot.com.br/2015/09/adelio-brasil-o-costureiro.html

domingo, 6 de setembro de 2015

Variações sobre o indizível ou para desconsolar o domingo

1) Do Victor Heringer, este texto sobre Aylan Kurdi, aqui.

2) Sobre o mesmo menino, mas um poema do Jefferson Vasques, aqui.

3) E saruês e mais e ainda. Do Lucas Gehre, aqui.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

domingo, 30 de agosto de 2015

Tudo isso estampado no rosto da Ana Martins Marques

Cecília,

sonhei com Alice Sant´Anna, falávamos sobre poesia. Ela parecia meio entediada com este assunto e eu mais empolgado, como um iniciante. Além disso, organizávamos uma antologia em que ela, Edson Lopes, poeta da minha terra, e talvez eu, reuniríamos nossos textos. Havia concordância de que ela e Edson deveriam ter seus textos compilados, mas havia dúvidas em relação a mim, porque escrevo predominantemente em prosa e não sabíamos ao certo quão adequado seria misturá-la com os versos. Acordei lembrando que o Vinícius de Moraes fez isso em Para viver um grande amor, em que alternou crônicas e poemas. Mas, para tal fim, criou um sentido bonito, de que estes visavam a amenizar um pouco aquelas, dar-lhes, quem sabe, um balanço novo. Talvez não conseguíssemos tal efeito; então, no sonho, defendia que não devíamos misturar a natureza dos textos, sob pena de não lapidarmos bem as arestas e o livro restar grosseiro. A prosa, de fato, parece pesar mais do que o poema (por mais narrativo que este seja, e por mais poética que ela seja) – talvez seja o uso recorrente dos pontos finais. Sim, talvez seja isso. O que pesa um texto em prosa talvez sejam os pontos finais.

Num determinado momento da discussão, eu já me convencia de que não faria parte da antologia, mas sugeri: vamos convidar a Ana Martins Marques! disse, com uma empolgação não compreendida nem por Edson, nem por Alice. Esta, inclusive, hesitou no olhar, como se duvidasse do meu gosto para poesia, como se duvidasse da habilidade poética de Ana. E então ratifiquei: os poemas dela são muito bons, não são? E, depois de mais um silêncio hesitante desconfortável, Alice Sant´Anna respondeu: sim, são bons, mas isso não quer dizer que ela seja uma poeta boa. Refleti sobre essa afirmação por um instante e, procurando algum sentido no que acabara de ouvir, mas confiando em sua avaliação, respondi: sim, talvez seja o modo como ela quebra os versos, ou seus poemas de amor, o problema está nos seus poemas de amor, não é? Alice continuou pensando, mas não respondeu. Ela parecia julgar ignorante tudo o que eu dizia sobre poesia.

Em outro momento do sonho, não sei se do mesmo sonho, mas certamente no mesmo mar da mesma noite, vi a Ana Martins Marques em várias fotografias banais, fotografias que continham algum movimento. Em todas elas, sua expressão revelava uma humanidade que não transparece em seus poemas: a humanidade contida no rosto amassado e inchado após acordar no meio da tarde; a oleosidade, tão humana, à mostra na pele após acordar do mesmo sono; um profundo tédio e insatisfação com a própria vida: tudo isso estampado no rosto da Ana Martins Marques. Ao analisar essas fotografias, finalmente a senti mais próxima de mim, um encurtamento de distâncias ainda mais eficaz do que seus poemas provoca. Seus poemas tão elevados, de elevação quase física.


Abraços, Cecília,

sonhar com essas mulheres
de alguma forma é sonhar com você

D.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

breve noticiário atrasado: mês 07

1) Um grupo de amigos e eu organizamos uma Feira de Trocas numa praça pública em Pirapora.

Sobre a Feira: fluiu como o rio. tudo nesta banda do norte de Minas parece obedecer
a esse movimento.

2) Na ocasião, lancei Escorre, meu primeiro livro artesanal. De poemas.

Sobre Escorre

a) imprimi-o em casa, após pragas rogadas à impressora. embora eu não tenha olhado o horóscopo à época, tenho certeza de que vivia um inferno astral tecnológico.

b) o adjetivo ar-te-sa-nal para um livro de poemas meu não poderia soar mais apropriado;

c) o primeiro plano era imprimir trinta cópias; após a primeira praga, reduzi para vinte; minha lentidão tão típica para lidar com tudo fez esse número cair para uma tiragem real de catorze cópias. mas a divulgação, ainda otimista, alardeou: serão vinte;

d) controlar todo o processo de produção de um livro, desde as batalhas com o Word até as dedicatórias, me fez sentir capaz de algo;

e) troquei-o por: outros livros de outros poetas; uma aula de yoga (e o consequente repisar a grama); dois livros de mangás; um combo de colagens incríveis; o desejo de que a Feira aconteça em bairros de periferia;

f) nunca imaginei, quando abandonei o curso de direito, que trocaria poemas meus sentado no chão de uma praça. mas a vida insiste em nos fazer melhor. e o melhor tem sido ser múltiplos. alternar-me e continuar me pertencendo, sob diferentes faces.

g) é um livro minimalista.

3) De repercussão, há este comentário generoso do Rafael Oliveira, membro do Clube Literário Tamboril, sobre os dois tópicos acima; e alguns outros abraços.

Sobre Rafael: é meu primo. também o chamo de Rei de Ouros.

4) Contudo, fotos serão mais contundentes.