quarta-feira, 28 de julho de 2021

Notas de leitura: “Lavoura arcaica”, Raduan Nassar




Um livro escuro por dentro. Delírio, casa erguida, laços de sangue, gavetas vazias, irmão mais velho, único golpe. Um livro feito de solenidade, trama canhota, lençóis, corredores confusos, palavra do pai. Um livro que deseja conhecer o corpo da família inteira. Cansado de ideias repousadas, um livro de língua inútil, que reconstrói o mundo das paixões, o mundo do desequilíbrio, somente para demolir a casa,

                                                                                abandonar a casa,

                                                                                mas quanta decepção

                                                                                fora dos limites da casa.

Um livro sonolência, um livro torpor, pesadelo de adolescência. Demência, loucura, lúcida escuridão. Está escrito: o tempo, o tempo, o tempo me pesquisava na sua calma, o tempo me castigava, que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? Está escrito: libélulas desovam no Teu púbis.

Uma linguagem a que também podemos chamar: fome, enfermidade, respiro, lâmina, arrepio, sopro, assédio impertinente dos testículos. Um protagonista que diz: eu, o epilético, o possuído, o tomado, eu, o faminto. E o espaço: um pasto exótico.

Um livro para as vítimas da ordem, para os derrotados de partida, filhos da casa velha, casa de perdição, reféns das delícias do amor clandestino. Para quem não tem culpa da chaga, do cancro, do espinho, da purulência, do inchaço. Aos que foram jogados à margem sem consulta, aos amputados, parte da escória, à insólita confraria dos enjeitados, proibidos, recusados pelo afeto, sem-sossego, intranquilos, inquietos, descendentes de Caim – sedentos de igualdade e justiça.

Uma síntese: entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar. Estranho é o mundo.

 

***

 

Imprimir as expressões abaixo, recortá-las, misturá-las dentro de um envelope pequeno, inserir um remetente e um destinatário, inserir também a fonte [“lavoura arcaica”, raduan nassar], lacrar o envelope, enviar a carta. Está pronta a crítica literária.

 

pedra de tropeço

palavra soberba

excesso de luz

(dobre a tua língua)

peito liso

pele branda

gesto imponderável

repouso quente

pesquisa insólita

pernas de potro

(sob o lençol)

faces imberbes

maçãs do rosto

certos olhos antigos

sombra de dúvida

primitivos olhos

águas inflamáveis

caldo turvo

sangue ruivo

razão mística da história

aprendiz de feiticeiro

história passional