terça-feira, 25 de junho de 2013

Navegador só

Trancado em meu quarto me sinto seguro. Minhas paredes, meus livros e perfumes, o espelho e o que escrevo formam uma âncora e um paradoxo. Estou tão próximo e quero me afastar de tudo que me diz: é você. Tudo em meu quarto sou eu. Do cais do meu porto posso enxergar minha vulnerabilidade nítida. Aquele homem está vulnerável a si. Aquele homem ali com uma âncora de mentira, vê? Ancorando no vazio, aquele homem perdido, vê?  

Fora da redoma com cortinas, há os outros e há também o mundo. Por instantes saio esperançoso, forço sorrisos. Mas logo estou correndo dos tubarões, à deriva. O mar não consegue me engolir, eu nado e nado até chegar de novo ao quarto, assustado, açoitado por uma imensidão que não toco: sentimento de pertencimento, ao contrário. Arfando tranco de novo a porta, posso respirar sossegado. Mas respiração e pensamento também são dor e incerto, inseto. E o mar é aqui dentro. Não consigo fugir de mim, estúpido.

Naquela noite, o encontro com a mulher aflita, calada e tímida me fez chorar na sua frente. Eu a vi, solitária, aprendendo a nadar já velha. E seu desespero surdo chegou até mim, ou emanou do meu peito e logo encontrou repouso. Na frente da mulher no meio do mar, na frente do homem com um b arco, choramos, qual imagens refletidas. Apesar dos olhos piedosos, ninguém pediu nem ofereceu lugar na embarcação vazia. Continuamos sozinhos, navegando, tentando ensandecidos, inúteis, mudos, mortos, não afogar. 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sê-los, o curta-metragem

Brenda,
Já te disse que estão fazendo um curta-metragem sobre nós? O que eles viram na gente? Quem são eles? Essa gente estranha que para sua rotina, interrompe o semáforo, o diálogo, a gritaria, a manifestação, para filmar, para escrever cartas, para testar caligafrias?
Disseram que nossa neblina é bonita. E que a gente se incomoda muito com o calor. Essa gente conhece a gente, Brenda? Será que transbordamos tão facilmente assim, que, com duas palavrinhas, já entregamos em abundância o resultado de anos de descobrimento? Quem são Roberto e Cecília? Estou numa crise de identidade. Vejo tristeza profunda nos olhos do ator. As pessoas veem tristeza profunda em mim? Sou tão triste assim?
Pressinto que o curta será um retrato saturado de nós dois, como se já não houvesse expressionismo o suficiente.
Brenda, tenho medo de espelhos.
Entraremos em colapso? 

 Roberto

 Cecília

As cartas
As pessoas sentem fome.
Compartilhar a mexerica é muito melhor do que comê-la sozinho.
Rúcula é uma palavra engraçada.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Fragmento de História


E tudo ia, digamos, mais ou menos
até que veio a peste negra de 1348.
E em breve plantávamos de novo os arrozais
quando veio a peste rosa de 1361.
Mas refizemos a alegria dos bordéis e sinos da paróquia
até que veio a peste vermelha de 1564.
E após a peste de 1586, que veio após o carnaval de 1578,
resolvemos dançar para sempre
na lâmina da noite
até que viesse uma outra peste
ou o arco-íris.


Affonso Romano de Sant’Anna