domingo, 29 de agosto de 2021

Vale a pena viver

 



O dia do professor passou e eu ainda estou aqui, às voltas com minha profissão.

Em sua “Aula magna”, proferida em 2019, na USP, disponível por escrito no site da Zazie Edições, João Adolfo Hansen, esse teórico e professor com 40 anos de atuação, ainda se faz, depois de tanto tempo, a seguinte pergunta: “por que ensinar literatura?”. E assim ele mesmo responde:

“Mas, então, por que ensinar literatura? – me perguntaram mil e uma vezes. Uma razão básica, para mim sempre óbvia e, acredito, totalmente suficiente, é a de que seria impossível conceber a vida humana sem a ficção. Sem Sófocles e Beckett, sem Ovídio e Drummond, sem Malcolm Lowry e Machado de Assis etc., a Terra não sairia do eixo, mas posso dizer com a mais total certeza que a vida humana seria muitíssimo mais miserável do que é, ainda mais aqui, nesse grande sertão hoje devastado pela peste.”

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Neste ano devastado pela peste, aliás, por muitas pestes, para continuar entrando em sala de aula todos os dias, tenho acumulado alguns troféus, algumas tábuas de salvação, tenho construído só para mim, do jeito que consigo, algum cais. Acho que o principal deles foi um adjetivo, um único adjetivo atribuído a mim por um adolescente de 14 anos, num curto diálogo que tivemos na plataforma virtual que hoje chamamos de espaço escolar. Ele disse assim: “oce é cabuloso, tmjj nessa jornada fessor”. “Cabuloso”: assim tenho me salvado.

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João Adolfo Hansen continua:

“Uma das razões de ensinar literatura evidenciando a historicidade dos seus processos de invenção, circulação e consumo era e é política, quero dizer, ensinar literatura para evidenciar o caráter arbitrário da cultura, a nenhuma universalidade das regras sociais, a total contingência das coisas e, com isso, criticar a naturalidade e a normalidade pressupostas nos hábitos.”

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Nesta semana, dei aula sobre “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, para a mesma turma dos alunos de 14 anos. Essa obra é muito importante para mim, pessoalmente, porque foi a primeira que me mostrou o que era sentir prazer estético; a primeira, ainda quando eu fazia teatro aos oito, nove anos, e o grupo do qual participei estava montando a peça. Lembro de ter chorado só de assistir ao primeiro ensaio, mesmo sem ter consciência ainda da força de um texto literário – acho que descobri ali. Na aula desta semana, quase vinte anos depois, debruçado sobre o mesmo texto, quase não consegui conter de novo as lágrimas. E após termos lido juntos o trecho final – que contém versos como “é difícil defender,/ só com palavras, a vida” – um aluno sintetizou muito bem tudo, como eles costumam fazer sem sentir, concluiu a aula dizendo: “vale a pena viver”. Outra tábua de salvação, outro cais, tenho um novo troféu agora – “vale a pena viver”.

(O desenho também é de uma aluna)



[Texto publicado no Facebook em 24 de outubro de 2020]

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Meus mortos vivem juntinhos de mim

 

(Antonio Bueno)


“Nós absorvemos o morto, nós nos nutrimos dele, fica sendo corpo e alma da gente. Não foi assim com Durval, seu pai? Com sua mãe, Zazita? Eles estão escondidinhos no mais recôndito de você, brincam nos seus atos, sorriem no seu sorriso. Eles são você, Lygia. Quem disse que há morte, se o que há é criação contínua, modelagem contínua da vida, que recebemos e que passamos adiante? Meus mortos vivem juntinhos de mim. Sem me perturbarem, conservam uma discrição, uma polidez, uma cumplicidade boa que me ajuda a viver. É isso, ajudam a gente a viver. Nem preciso de doutrinas espiritualistas para senti-lo. É tão evidente que considero meus mortos muito mais vivos e reais do que tanta gente por aí com quem cruzo na rua.”


(Carlos Drummond de Andrade, 
em carta a Lygia Fagundes Telles de setembro de 1977, 
em ocasião da morte do marido dela, Paulo Emílio Sales Gomes. 
A pintura é “Natura morta con iris”, de Antonio Bueno, 1948.)