quinta-feira, 24 de março de 2016

Bukowski, o computador e a máquina de escrever


“22/11/91 – 00:26

Bem, meu 71º ano foi um ano muito produtivo. Provavelmente escrevi mais palavras este ano do que em qualquer ano da minha vida. E, apesar de um escritor ser um mau juiz do seu próprio trabalho, ainda tenho a tendência de acreditar que estou escrevendo melhor do que antes – quero dizer, tão bem quanto nos meus períodos de auge. Este computador, que comecei a usar em 18 de janeiro, tem muito a ver com isso. Simplesmente é mais fácil escrever, a palavra é transferida mais rápido do cérebro (ou de onde quer que venha) aos dedos e dos dedos ao monitor, onde fica visível imediatamente – nítida e clara. Não é uma questão de velocidade em si, é uma questão de fluxo, um rio de palavras e, se as palavras forem boas, deixe que elas fluam com facilidade. Chega de carbonos, chega de reescrever. Antes, eu precisava de uma noite para escrever e a noite seguinte para corrigir os erros e a bagunça da noite anterior. Erros de ortografia, de tempos verbais etc. podem agora ser todos corrigidos na cópia original sem ter que datilografar tudo de novo, escrever por cima ou rasurar. Ninguém gosta de ler uma cópia rabiscada, nem mesmo o escritor. Sei que tudo isso pode parecer frescura e excesso de zelo, mas não é, tudo o que faz é deixar que a força ou sorte que você possa ter criado surja claramente. É para seu bem, realmente, e se é assim que você perde sua alma, sou totalmente a favor.

Houve alguns momentos ruins. Lembro de uma noite, depois de escrever por umas quatro horas, que achei que tinha tido uma sorte incrível quando – bati em alguma coisa – houve uma descarga de luz azul e as várias páginas que tinha escrito desapareceram. Tentei e tudo para trazê-las de volta. Simplesmente desapareceram. Sim, eu tinha posto em “Salvar tudo”, mas não fez diferença. Isto já tinha acontecido outras vezes, mas não com tantas páginas. Vou te contar, foi a mais terrível das sensações quando as páginas desapareceram. Pensando bem, já perdi três ou quatro páginas da minha novela outras vezes. Um capítulo inteiro. O que fiz foi simplesmente escrever tudo de novo. Quando você faz isso, você perde alguma coisa, pequenos detalhes não voltam, mas você também ganha alguma coisa, porque quando você reescreve você deixa de fora partes de que não gostou muito e acrescenta partes que são melhores. E daí? Bem, daí é que é uma longa noite. Os passarinhos já acordaram. Minha mulher e os gatos acham que fiquei louco.

Consultei alguns especialistas sobre a ‘luz azul’, mas nenhum conseguiu me dizer nada. Descobri que a maioria dos experts em computador não são muito espertos. Acontecem coisas confusas que não estão nos livros. Acho que sei uma coisa que poderia ter recuperado o trabalho depois da ‘luz azul’...

A pior noite foi quando sentei no computador e ele ficou completamente maluco, mandando bombas, sons estranhos e altos, momentos de escuridão, treva mortal, tentei, tentei e não consegui fazer nada. Daí, reparei no que parecia ser um líquido que tinha endurecido sobre a tela e ao redor da abertura perto do ‘cérebro’, a abertura onde se colocam os disquetes. Um dos meus gatos tinha mijado no computador. Tive que levar para a loja de computadores. O mecânico tinha saído e quando um vendedor retirou uma parte do ‘cérebro’ um líquido amarelo espirrou sobre a sua camisa branca e ele gritou ‘mijo de gato!’. Coitado. Coitado. De qualquer forma, deixei o computador. A garantia não cobria nenhum dano por mijo de gato. Tiveram que tirar, praticamente, todas as entranhas do ‘cérebro’. Levaram oito dias para consertá-lo. Durante este período, voltei à minha máquina de escrever. Era como tentar quebrar pedras com as mãos. Tive que aprender a datilografar de novo. Tinha que ficar bêbado para conseguir que as palavras fluíssem. E, mais uma vez, era uma noite para escrever e outra para arrumar. Mas ainda bem que a máquina estava lá. Ficamos juntos por mais de cinco décadas e tivemos ótimos momentos. Quando peguei o computador de volta, foi com certa tristeza que recoloquei a velha máquina no seu canto. Mas voltei ao computador e as palavras voaram como pássaros enlouquecidos. E não houve mais nenhuma luz azul e palavras que desapareciam. Estava ainda melhor. O gato ter mijado no computador arrumou tudo. Só que agora, quando saio do computador, cubro-o com uma grande toalha de praia e fecho a porta.

Sim, esse tem sido meu ano mais produtivo. O vinho fica melhor se for envelhecido adequadamente.

Não estou competindo com ninguém, não tenho ilusões com a imortalidade, não estou nem aí pra ela. É a AÇÃO enquanto você está vivo. Os partidores se abrindo na luz do sol, os cavalos mergulhando na luz, todos os jóqueis, bravos e pequenos diabos em sua seda brilhante, indo fundo, fazendo acontecer. A glória é o movimento e a audácia. Que a morte se foda. É hoje e hoje e hoje. Sim.”


(Charles Bukowski, trecho de seu diário retirado de O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, 1998, L&PM Pocket, tradução de Bettina Gertum Becker). 

terça-feira, 15 de março de 2016

a naturalização do horror


“Em consideração pelos pais, durante o dia ele não queria mostrar-se à janela; mas nos poucos metros quadrados do chão também não podia se arrastar muito; já durante a noite suportava mal ficar deitado quieto; a comida logo não lhe oferecia o menor prazer; e assim, para se distrair, ele adotou o hábito de ziguezaguear pelas paredes e pelo teto. Gostava particularmente de ficar pendurado no teto; era muito diferente de permanecer deitado no chão; respirava-se com mais liberdade; uma ligeira vibração atravessava o corpo; e, na distração quase feliz em que Gregor lá se encontrava, podia acontecer que, para sua própria surpresa, ele se soltasse e estatelasse no chão. Naturalmente tinha agora sobre o corpo um poder muito diverso do que antes e mesmo com uma queda tão grande como essa não infligia danos a si mesmo. A irmã notou logo a nova diversão que Gregor havia descoberto – ao rastejar ele deixava aqui e ali vestígios da sua substância adesiva – e então ela pôs na cabeça que devia dar a Gregor a possibilidade de rastejar na extensão máxima do quarto, retirando os móveis que o obstavam, sobretudo o armário e a escrivaninha.”


(Franz Kafka, A metamorfose, 1915, Ed. Brasiliense)

domingo, 6 de março de 2016

Tentativa de resenha: "Dublinenses", James Joyce


Dublinenses, primeiro livro a ser publicado por James Joyce, com apenas 25 anos, reúne 15 contos que, para além de narrar um trecho da vida de seus personagens, narra a Dublin do início do século XX. A história da Irlanda é percorrida através dos passos de personagens como Eveline, do conto que recebe seu nome, que planeja fugir com o namorado marinheiro na intenção de se libertar do pai violento e do peso da vida doméstica; e Farrington, do excepcional Partes complementares, trabalhador que, após o estresse causado pelo trabalho, demite-se e gasta o seu tempo pelos bares da capital irlandesa. Encontramos, através da vida humana apresentada, uma Dublin economicamente decadente, com crise de inferioridade perante outros países, mas ainda conservadora em relação às tradições, principalmente às cristãs.

Seus personagens, em diferentes contos, caminham pelas mesmas ruas e temos a impressão de que, em diversos momentos, eles se encontram, mas não se reconhecem. Nós mesmos nos sentimos percorrer lugares conhecidos, conforme o livro vai avançando. O autor trabalha bem esse sentido de continuidade geográfica, nos informando de que é a cidade sua matéria-prima. A cidade que mora em cada uma das pessoas descritas. A palavra dublinenses tanto pode ser compreendida como “os nascidos em Dublin”, quanto “as coisas de Dublin”. Cidade e indivíduo se fundem.

Em livros de contos, gosto do efeito de abandonar os personagens em um momento específico de sua vida. Há tempo suficiente para o apego, mas a despedida chega muito depressa. O que sobra é a sensação de incompletude que nos acompanha, no que quer que façamos. O conto nos lembra de que a vida, nossa vida, nunca estará completa. Acompanhamos a existência do outro apenas por um trecho, um número pequeno de páginas. Depois o abandonamos. Depois o outro nos abandona. E é hora de partir para uma narrativa nova. Que dá lugar à outra. No fundo, aprendemos a lidar com despedidas ao lermos livros de contos. James Joyce nos ensina bem.

Destaque para: Depois da corrida, Partes complementares, Um caso doloroso e Os mortos.



Dublinenses
James Joyce
1914
L & PM Pocket
216 páginas.

Avaliação: 4/5