quinta-feira, 4 de abril de 2019

O homem permanecido


Era uma vez
uma venta fremente e um duro queixo.
Era uma vez um pisado de levantar pedra e poeira.
O que chamam de morte devastou com as narinas, o maxilar,
o dorso dos pés e sua planta.
Sobrou um gesto reto no espaço, a fremência,
um modo de passos e voz.
Eu lembro coisas que acontecerão:
era uma vez um homem que está rijo e cantante,
sem o espírito e a lei da gravidade,
alegre de nenhuma ameaça.

(Adélia Prado, Bagagem, 1976)

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Rufus

(autoria desconhecida)



você – como tantos outros – acabou
não morrendo. Nem aqui nem em Bruxelas
parte alguma. A questão do apartamento
permanece pendente (estar-se em
plena obra). Sem diploma não tem como.
Você passou sem cura de repouso você não contraiu
uma afecção misteriosa você não botou
os pulmões pra fora de tanto tossir
num banheiro de hotel cheio de flores. Você
segue com esse estranho hábito de não lembrar
em nada a Barbara Stanwyck, ah, que se há de fazer?
Eu me mudaria para uma fonte em Amsterdã
algemado aos clarões de água
entra dia, sai dia injuriando
assistentes sociais – mas pense bem
pense bem. Não dou corda no despertador
e é o próprio tempo que nega fogo.

Manhã – unguento geral – espalha
pelo Rio um brilho rouco – na frente do Edifício
Argentina me parece capital saber o nome das coisas –
precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil

estou cheio de prédios
voltas hélices passarelas
o metrô corre atrás do próprio rabo
um tranco, não tem quem fique em pé
você me diz: nunca dês um nome a um trem
sempre é outro trem a passar
eu digo: ha. Ha ha
ha ha

você está de dieta ou desistiu, afinal, de descortinar
uma grande verdade interior? Teus olhos têm um ar
de perda,
pendem, como os seios de uma mãe antiga. Tanto
tempo passado
em ônibus que a gente aprende à força o prazer do
caminho
chegar lá é sempre um pouco
desorientante

precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil


(Ismar Tirelli Neto, synchronoscopio, Ed. 7 Letras, 2008)