domingo, 21 de setembro de 2014


“Agora é o sertão. Perfume das flores do sertão. Campos amigos, aves amigas, magros cachorros nas portas das casas. Velhos que parecem missionários indianos, negros de longos rosários no pescoço. Cheiro bom de comidas de milho e mandioca. Homens magros que lavram a terra para ganhar mil e quinhentos dos donos da terra. Só a caatinga é que é de todos, porque Lampião libertou a caatinga, expulsou os homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O herói Lampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizem que ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração, assassino, desonrador, ladrão. Mas para Volta Seca, para os homens, as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o bem maior do mundo. E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia.”


(Jorge Amado, Capitães da Areia, 1937)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Laerte


De Fernanda para Brenda, de Brenda para Fernanda

Brenda, o verbo sorriso caminha comigo pelos dias. Olho para o mundo e o tom é amarelo. Mesmo melancólica, sorrio alaranjado. Deve ser o signo, ou o meu cabelo. Resolvi manter o cabelo alto: lisa não é a minha textura. Talvez haja texturas aqui dentro. Fui pintada por muitos artistas, minha amiga, inclusive, artistas crianças. Crianças são umas sábias, não são? Ao invés de ver o mundo em um só tom, elas veem arco-íris em toda parte; e isso é sabedoria: saber-se que só se sabe nos plurais.

Fernanda, sua alegria me humilha. Não consigo ser tão feliz assim. Mesmo a minha felicidade sangra. Olho as pessoas na rua: mesmo rodeadas por outras pessoas, ou por compras, ou por crianças, sua expressão física é de dor: as sobrancelhas se juntam em direção ao nariz, e elas suam, e elas desanimam. Suor é lágrima despudorada. Não vejo nenhum prêmio no suor. Tentei academia, mas chorei demais, suada. Tentei olhar o dia, mas o calor do norte de Minas racha. Rachaduras são as veias e artérias do meu peito: ao invés de bater, grito.

Brenda, entendo a sua agonia. Não pense que promovo a ditadura da alegria. Ser alegre e colorida também me aprisiona: somos feitas de fogo e cinza. Perceba, o mundo não se fecha em categorias: somos duplas, contraditórias, isso, de enxergar o mundo quadrado deste jeito, faz parte dessa síndrome de adultice aguda com a qual nos deparamos: crescer dói sobremaneira. Crianças também sofrem. Todo mundo sangra. Mas há cor no vermelho: é preciso enxergar a beleza da contradição das coisas.

Seu discurso me encanta, Fernanda. Qual o significado do seu nome mesmo? Deve ser algo de anjo, ou de muito belo. Você sempre plantou flores por onde esteve, e isso não é culpa sua, nem entendo como ditadura: deve ser coisa de signo, ou de cabelo. A gente escolhe como vai ser até certo limite. Da cerca para lá, acho que é o universo. Meus cabelos são lisos, gosto de me perder pelas madrugadas e de escrever conforme consigo. Escrever também me deixa suada. Mas não desisto: mais uma vez porque sinto, cada vez com maior firmeza, que algo além de mim me governa.

Sinto saudade da nuvem onde você se esconde, Brenda. Você é muito nebulosa. A neblina é sua casa. Mesmo no calor do norte de Minas, você é chuva abafada.

Fernanda, acho que podemos resumir nossa conversa: algo como dia e noite, sol e lua, preto e branco, alegria e tristeza, que não se anulam, mas se complementam. Pois até a nuvem desaba, até a mais escura nuvem, quando cai, faz nascer a planta. E a cor se pinta. 


(Texto publicado na coluna O salto, Jornal A Semana – 12/09/2014. A ideia foi testar a síntese, refletindo a boa influência dos quadrinhos que estou tendo – Odyr, Laerte. O melhor disso tudo é perceber que as artes se encontram todas no mesmo ponto, ou se irradiam dele, ou se misturam, ou são todas uma coisa só. Coisa é uma boa palavra de definição. Restringir-se ao seu nicho de produção artística pode ser chato, cansativo ou vazio demais. As artes plásticas dizem tanto sobre a literatura quando esta diz sobre a música. Ao final de tudo, somos apenas gente querendo dizer. E esse apenas já é tanto.  Permanecer calado não significa não tentar.)

domingo, 7 de setembro de 2014

O salto


Estreou na última sexta-feira (05 de setembro de 2014), a coluna O salto, publicada no Jornal A Semana, de Pirapora e toda microrregião do Médio São Francisco, coluna-espaço-aberto para os(as) artistas piraporenses, buritizeirenses, norte-mineiros publicarem semanalmente seus trabalhos – poemas, narrativas, fotografias, desenhos, pinturas, quadrinhos etc. Escrevi o texto de apresentação da coluna e a ideia, além de apresentar a proposta, foi lançar um manifesto: manifesto a favor da cultura regional: a favor do rio daqui que produz peixes aqui que produzem arte aqui. Correnteza a favor do salto. O texto na íntegra pode ser lido abaixo.

P.S.: Continua ventando por cá.


Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor

                                           
Dexôtedizer: Pirapora tem cultura sim!

Ainda que neguem os que não querem enxergar. Ainda que chamem de sem cultura o povo dessas ribeiras daqui

Dexôtefalar: Pirapora tem cultura sim!

Acontece nessa região de norte de Minas movimentos artísticos de resgaste da cultura regional, da cultura do povo que produz cultura mesmo sem saber que o faz. Iniciativas como saraus, grupos de teatro, literatura e danças folclóricas, propõem-se a serem espaços de visibilidade para os artistas de cá, para que estes se olhem, se conversem, se apreciem e se mostrem para todo mundo que puder enxergar – enxergar sem ver, enxergar-sentir.

E eis que Pirapora se (re)descobre. Sem precisar do olhar do descobridor estrangeiro, de um venturoso navegante, dono de olhos-poder. Pirapora se (re)descobre porque olha para o próprio umbigo lavado de rio e, pam!, encontra poesia ali. Bem que minha avó dizia que sujeira de umbigo é poesia, sujeira de umbigo é poesia. Pirapora agora canta para os sete ventos que carrega, em seu colo, poetas, escritores e escritoras, pintores e pintoras, fotógrafos, fotógrafas, desenhistas, artistas, artistas!

E artistas são como peixes que de vez em quando saltam. Saltam para se mostrar. Saltam para dizer que existem. Saltam porque viver no fundo do rio é necessário, mas às vezes dói demais – é triste. O artista necessita lançar-se. E o artista é peixe. E o artista piraporense, como prenunciou o nome-profecia, salta.

Pirapora é o salto do peixe, atenta.

Pirapora é lugar de artista.

E Buritizeiro também. E o norte de Minas.

É para ajudar a saltar, que o Jornal A Semana avisa que, a partir de agora, além de jornal, é rio de onde os peixes saltam. Artistas de Pirapora, Buritizeiro e região, venham todos e todas saltar por essas águas. A partir de agora, o jornal é também lugar de gente que inventa – e nada. Envie seu trabalho para a gente – poema, prosa, pintura, desenho, quadrinho, fotografia – que a gente publica.

Porque como diz a cantiga da lavadeira que volta, feliz, do Rio São Francisco:

Pira-poré lugar de peixe,

Pira-poré lugar de artista,

Pira-poré lugar de peixe,

Pira-poré lugar de artista.

Coluna O salto



P.S.2: E para quiser enviar o seu trabalho, taí o e-mail: osaltojornalasemana@gmail.com

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Respondendo a uma pesquisa, Pablo Neruda

Você se pergunta o que se passará com a poesia no ano 2000. É uma pergunta embaraçosa. Se esta pergunta me surgisse num beco escuro, de improviso, eu levaria um susto que Deus nosso Senhor me acuda.
Porque, que sei eu do ano 2000? E sobretudo, que sei da poesia?
Do que estou certo é de que não se celebrará o funeral da poesia nesse próximo século.
Em todas as épocas a poesia foi dada como morta, ela porém se tem mostrado centrífuga e sempiterna, se tem mostrado vitalícia, ressuscita com grande intensidade, parece ser eterna. Com Dante pareceu que terminava. Porém pouco depois Jorge Manrique lançava uma centelha, espécie de sputnik, que prosseguiu cintilando nas trevas. E logo Victor Hugo parecia arrasar, não ficava nada para os demais. Então o senhor Charles Baudelaire apresentou-se corretamente trajado de dândi, seguido do jovem Arthur Rimbaud, trajado de vagabundo, e a poesia começou de novo. Depois de Walt Whitman, que esperança!, já ficaram plantadas todas as folhas de relva, não se podia pisar no relvado. Não obstante, veio Maiakovski e a poesia parecia uma casa de máquinas: deram-se assobios, disparos, suspiros e soluços, ruído de trens e de carros blindados. E assim prossegue a história.

É claro que os inimigos da poesia sempre pretenderam assestar-lhe uma pedrada num olho ou um golpe de garrote na nuca. Fizeram-no de diversos modos, como marechais individuais, inimigos da luz, ou regimentos burocráticos que marcharam com passo de ganso contra os poetas. Conseguiram a desesperação de alguns, a decepção de outros, as tristes retificações dos menos. Mas a poesia continuou a  brotar como uma fonte ou a manar como uma ferida, ou a construir com o braço partido, ou a cantar no deserto, ou a levantar-se como uma árvore, ou a transbordar como um rio, ou a estrelar-se como a noite nas mesetas da Bolívia.
A poesia acompanhou os agonizantes e estancou as dores, conduziu às vitórias, acompanhou os solitários, foi queimante como o fogo, leve e fresca como a neve, teve mãos, dedos e punhos, teve brotos como a primavera, teve olhos como a cidade de Granada, foi mais veloz do que os projéteis dirigidos, foi mais forte do que as fortalezas: deitou raízes no coração do homem.
Não é provável que, começando o ano 2000, os poetas encabecem uma sublevação mundial para que se reparta a poesia. A poesia se repartirá como consequência do progresso humano, do desenvolvimento e do acesso dos povos ao livro e à cultura. Não é provável que os poetas cheguem a opinar ou a governar, embora alguns deles o estejam fazendo, alguns muito mal e outros menos mal. Mas os poetas serão sempre bons conselheiros e cuidado com deixar de ouvi-los. Muitas vezes os governantes têm comunicações públicas com seus povos. A poesia tem comunicação secreta com os sofrimentos do homem. Há que ouvir os poetas. É uma lição da história.

É provável que no ano 2000 o poeta mais novidadeiro, mais na moda em toda parte, seja um poeta grego que agora ninguém lê e que se chamou Homero.
Eu estou de acordo e com este objetivo vou começar a lê-lo novamente. Vou procurar sua influência, brande e heroica, suas maldições e profecias, sua mitologia de mármore e seus bordões de cego.
Preparando o novo século, tratarei de escrever à maneira de Homero. Não me ficará mal um estilo tão fabuloso e tão encharcado do mar ilustre.
Logo sairei com algumas bandeiras de Ulisses, rei de Ítaca, pelas ruas. E como os  gregos já terão saído de seus presídios, acompanhar-me-ão também para dar as normas do novo estilo do século XXI.


(texto retirado da obra Para nascer nasci, de Pablo Neruda, organizada postumamente por Matilde Neruda e Miguel Otero Silva, 1977)