domingo, 27 de julho de 2014

Reencontrar Clarice

Gastei um dia inteiro para ler um conto de Clarice. Tive que sorvê-lo por partes. Bastam-me algumas páginas e estou abatido. Abatido como numa guerra, ou feito carne. É de carne que me faço. Carne e espírito. Clarice desvenda os dois, por isso o domingo inteiro para lhe ler um único conto dividido, por mim, em três partes. Preciso de tempo para respirar, ir a outros lugares. Clarice me sufoca com seus dedos duros e rijos. Sufoca minha palavra na garganta e só o que me resta é esperar o conto terminar para que eu a pronuncie. Minha palavra é um gemido perplexo de ah, clarice.  Quem desvendará o seu espírito e a sua carne?

O conto: Os desastres de Sofia.
O livro: A Legião Estrangeira (1964).
A autora: Clarice.

“De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto – uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.”


Em tempo: assim como este conto é dos melhores, esta entrevista também ocupa os mesmos patamares:


terça-feira, 22 de julho de 2014

Sobre o movimento

A música tem preenchido meus dias. Guilherme Scardini tem dado o tom desta terça-feira com sua voz baixa e levemente rouca, sua humildade, sua delicadeza. Terças-feiras podiam ser sempre assim: dia de voz, violão e movimento. Te agradeço, Guilherme. Pelos abraços de esquina e pela música, sobretudo, pela sua arte. Que dure. 

Ouça Sobre o movimento, e as outras músicas do EP Varandeiro, aqui. 



(Laerte)

domingo, 20 de julho de 2014

“’Poeta’, eu nunca ouvi esta palavra na verdade, eu nunca pude me ver como um poeta até chegar a Nova York. E por uns tempos eu realmente pensei que fosse um poeta mas eu não mais me considero um poeta. Depois de ver todo o restante das pessoas que são chamadas de ‘poetas’, simplesmente não gosto de pensar em mim como um poeta porque isso me põe numa categoria com um monte de gente engraçada, você sabe.”

(Bob Dylan, Canadá, 1971.
Trecho retirado do livro Bob Dylan por ele mesmo, Martin Claret, 1994)

domingo, 6 de julho de 2014

“Vi na televisão paisagem do Nordeste. Lá o Brasil tem história, vira país antigo. Moramos no lugar mais bobinho de Minas, nunca acharam uma cerâmica, um ferro de senzala nesta minha cidade. Cheira a Deus a velhice dos recém-nascidos, cheiram a sarcófago, a eternidade, os adoráveis nenéns. A matéria é eterna? Ser é tão absurdo quanto não ser. Graça passa mal quando pensa em infinito. Diante de mistério tão avassalador, não sei onde pendurar este casículo. Abel me contou que estava atravessando o pontilhão da mina e cruzou com o Pardal que lhe implorou: oi, oi, deixa eu passar a mão no seu pinto, oi, oi, deixa, deixa, só um pouquinho, oi. Isto aconteceu e não pode ficar sobrando na história das civilizações, senão a engrenagem enguiça, o eixo da terra se inclina e o sentido último de tudo – o que interessa – se perde e aí, oi, oi, loucura, danação eterna, sofrimento inenarrável, palavra que meu pai adoraria, como adorava inabalável. Mudava-lhe o semblante. Meus exames estão ótimos. Estou disposta para um monte de coisas, escrever o que me cair da telha, trabalhar na catequese, viajar o Nordeste – projeto mais remoto por causa do avião –, ao norte de Minas, a lugares antigos, escrever um auto onde precisarei de luzes vermelhas e comprar uma coisa de ouro para mim. É preciso dar graças. Os pobres? Sou eu.”


(Adélia Prado, em Quero minha mãe, 2005)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

o tempo é mesmo de Amarante e muro:

'o rio fica lá, a água é que correu
chega na maré, ele vira mar
como se morrer fosse desaguar
derramar no céu, se purificar
deixar pra trás sais e minerais
evaporar'