terça-feira, 16 de julho de 2019

Urano


(autoria desconhecida)


“O céu se tornara mais limpo, inteiro, desviando-se do azul para o lilás. De vez em quando se ouvia o estrondo de uma detonação.
O que é que você está preparando agora, Sara? Marcela perguntou.

Uma teia, ela disse. Uma teia entre livros. –
– Uma linha sai de um livro, vai a outro livro, e a outro. –
– Vou costurar uma biblioteca inteira.

Tom abraçou-se às duas:
Hadar... Acrux, Becrux – ali, no Cruzeiro do Sul. Antares, a Oeste. Pégaso, Andrômeda, Escultor, Fênix... Tom ia apontando o céu, unia com os dedos as constelações invisíveis.
Lá embaixo: Aldebarã, Bellatrix – bem embaixo, no leste.
Urano? Se você quer Urano, está ali atrás, correndo sobre Peixes, perto de Netuno. –
– Urano. Uma bola azul, gasosa, gelada. Os dias lá passam depressa, mas os anos não acabam.
No dia em que eu recuperar as palavras, ele disse, vou entender alguma coisa – essas superfícies, essa agonia.”


[Marcílio França Castro, A superfície dos planetas.
In: Histórias naturais, Companhia das Letras, 2016]

quinta-feira, 4 de julho de 2019


Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que faz um livro
quando tomba
os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar das páginas
os que veem o mundo como um grande volume ilustrado
no entanto sem legendas sem índices remissivos sem notas explicativas
os que conhecem as cidades apenas pelo nome
e acham que cabem no nome muitas coisas
inclusive certas ruas vazias de madrugada
as casas prestes a serem demolidas
os mesmos talvez que pensam que um corpo pesa tanto
na cama quanto no pensamento
aqueles como nós para quem o desejo
não é prenúncio mas já a aventura
os que se reconhecem na tristeza
das piscinas vazias à beira-mar


[Ana Martins Marques, O livro das semelhanças, Companhia das Letras, 2015]