domingo, 30 de agosto de 2015

Tudo isso estampado no rosto da Ana Martins Marques

Cecília,

sonhei com Alice Sant´Anna, falávamos sobre poesia. Ela parecia meio entediada com este assunto e eu mais empolgado, como um iniciante. Além disso, organizávamos uma antologia em que ela, Edson Lopes, poeta da minha terra, e talvez eu, reuniríamos nossos textos. Havia concordância de que ela e Edson deveriam ter seus textos compilados, mas havia dúvidas em relação a mim, porque escrevo predominantemente em prosa e não sabíamos ao certo quão adequado seria misturá-la com os versos. Acordei lembrando que o Vinícius de Moraes fez isso em Para viver um grande amor, em que alternou crônicas e poemas. Mas, para tal fim, criou um sentido bonito, de que estes visavam a amenizar um pouco aquelas, dar-lhes, quem sabe, um balanço novo. Talvez não conseguíssemos tal efeito; então, no sonho, defendia que não devíamos misturar a natureza dos textos, sob pena de não lapidarmos bem as arestas e o livro restar grosseiro. A prosa, de fato, parece pesar mais do que o poema (por mais narrativo que este seja, e por mais poética que ela seja) – talvez seja o uso recorrente dos pontos finais. Sim, talvez seja isso. O que pesa um texto em prosa talvez sejam os pontos finais.

Num determinado momento da discussão, eu já me convencia de que não faria parte da antologia, mas sugeri: vamos convidar a Ana Martins Marques! disse, com uma empolgação não compreendida nem por Edson, nem por Alice. Esta, inclusive, hesitou no olhar, como se duvidasse do meu gosto para poesia, como se duvidasse da habilidade poética de Ana. E então ratifiquei: os poemas dela são muito bons, não são? E, depois de mais um silêncio hesitante desconfortável, Alice Sant´Anna respondeu: sim, são bons, mas isso não quer dizer que ela seja uma poeta boa. Refleti sobre essa afirmação por um instante e, procurando algum sentido no que acabara de ouvir, mas confiando em sua avaliação, respondi: sim, talvez seja o modo como ela quebra os versos, ou seus poemas de amor, o problema está nos seus poemas de amor, não é? Alice continuou pensando, mas não respondeu. Ela parecia julgar ignorante tudo o que eu dizia sobre poesia.

Em outro momento do sonho, não sei se do mesmo sonho, mas certamente no mesmo mar da mesma noite, vi a Ana Martins Marques em várias fotografias banais, fotografias que continham algum movimento. Em todas elas, sua expressão revelava uma humanidade que não transparece em seus poemas: a humanidade contida no rosto amassado e inchado após acordar no meio da tarde; a oleosidade, tão humana, à mostra na pele após acordar do mesmo sono; um profundo tédio e insatisfação com a própria vida: tudo isso estampado no rosto da Ana Martins Marques. Ao analisar essas fotografias, finalmente a senti mais próxima de mim, um encurtamento de distâncias ainda mais eficaz do que seus poemas provoca. Seus poemas tão elevados, de elevação quase física.


Abraços, Cecília,

sonhar com essas mulheres
de alguma forma é sonhar com você

D.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

breve noticiário atrasado: mês 07

1) Um grupo de amigos e eu organizamos uma Feira de Trocas numa praça pública em Pirapora.

Sobre a Feira: fluiu como o rio. tudo nesta banda do norte de Minas parece obedecer
a esse movimento.

2) Na ocasião, lancei Escorre, meu primeiro livro artesanal. De poemas.

Sobre Escorre

a) imprimi-o em casa, após pragas rogadas à impressora. embora eu não tenha olhado o horóscopo à época, tenho certeza de que vivia um inferno astral tecnológico.

b) o adjetivo ar-te-sa-nal para um livro de poemas meu não poderia soar mais apropriado;

c) o primeiro plano era imprimir trinta cópias; após a primeira praga, reduzi para vinte; minha lentidão tão típica para lidar com tudo fez esse número cair para uma tiragem real de catorze cópias. mas a divulgação, ainda otimista, alardeou: serão vinte;

d) controlar todo o processo de produção de um livro, desde as batalhas com o Word até as dedicatórias, me fez sentir capaz de algo;

e) troquei-o por: outros livros de outros poetas; uma aula de yoga (e o consequente repisar a grama); dois livros de mangás; um combo de colagens incríveis; o desejo de que a Feira aconteça em bairros de periferia;

f) nunca imaginei, quando abandonei o curso de direito, que trocaria poemas meus sentado no chão de uma praça. mas a vida insiste em nos fazer melhor. e o melhor tem sido ser múltiplos. alternar-me e continuar me pertencendo, sob diferentes faces.

g) é um livro minimalista.

3) De repercussão, há este comentário generoso do Rafael Oliveira, membro do Clube Literário Tamboril, sobre os dois tópicos acima; e alguns outros abraços.

Sobre Rafael: é meu primo. também o chamo de Rei de Ouros.

4) Contudo, fotos serão mais contundentes.  

















domingo, 16 de agosto de 2015

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Práticas pedagógicas libertadoras e a vacilação


Trabalho como educador de língua portuguesa, literatura e redação numa turma de nono ano, ensino médio e em turmas de pré-ENEM e pré-concursos públicos. Hoje, cheguei em casa do trabalho um tanto atravessado por uma experiência em sala de aula, e fui ler a coluna de Márcia Tiburi, na Revista Cult de junho (número 202): Falar sozinho. O texto discute o modo de pensar autoritário, que nega e mesmo suprime qualquer possibilidade de diálogo, e estabelece distinção entre esse regime de pensamento e outro, democrático:


Conversar com quem opera dentro do paradigma de pensamento autoritário torna-se um desafio para quem opera no paradigma de pensamento democrático. A impossibilidade do diálogo constitui a vitória do pensamento autoritário. Mas para o regime de pensamento democrático, em si mesmo voltado ao outro, em si mesmo aberto, em si mesmo esperançoso, ele representa o experimentum crucis do conhecimento que não é apenas uma descrição do mundo, mas uma operação de transformação do mundo.


Não é a primeira vez que leio texto da mesma autora que problematiza a educação (nesse caso, também a educação) – em Polifonia do silêncio, publicado no mês de maio na mesma revista, ela evocava a importância pedagógica do silêncio vivo (o contrário de mutismo) na sala de aula. Em Falar sozinho, porém, a leitura me remeteu a minha experiência com os(as) educandos(as), aquela que me trouxe atravessado para casa.

De arquitetura simples, eu havia planejado uma aula de oficina de texto, para as turmas do nono e primeiro ano, que funcionaria a partir do estímulo à produção de uma síntese criativa. Os(as) alunos(as) receberiam um texto, leríamos juntos(as), discutiríamos seu conteúdo, e depois lhes orientei para que buscassem trechos (palavras, frases, parágrafos) que lhes tivessem subjetivamente impressionado. Após essa seleção individual, teriam que recortar esses trechos e reorganizá-los de modo que produzissem, ou não, algum sentido novo. O texto deveria ser curto, poderia conter uma frase, inclusive. O objetivo era sua participação ativa tanto na compreensão do texto original, intrometendo-se literalmente nele, recortando-o, selecionando as melhores partes; quanto na elaboração de um novo sentido a partir das palavras selecionadas originalmente por outro autor(a). Nasceria, desta forma, uma relação de coautoria do texto novo.

Os escritos utilizados como base foram: Sobre ser gorda e a farsa da feminilidade, de Beatriz Rodrigues, publicado virtualmente na Revista Capitolina, para a turma do nono ano; e o conto Tentação, de Clarice Lispector, para a outra turma. A seleção dos textos, mais tarde percebi, colaborou para o bom resultado da experiência, pois tanto houve uma identificação instantânea com o assunto discutido no primeiro (o que aumenta o interesse na leitura e no próprio desenrolar da atividade), como uma quase garantia de bons frutos devido ao trabalho poético do segundo.

Enquanto as aulas aconteciam, compreendi aos poucos as diversas camadas da metodologia aplicada. Com cada aluno(a) reorganizando palavras e frases a partir de uma orientação subjetiva, percebi que um texto contém em si infinitos outros, infinitas possibilidades de leitura e produção de sentido – conclusão nada nova, mas só então apreendida. Além disso, o processo de leitura me pareceu ainda mais honesto graças à possibilidade física de recortar o texto e selecionar apenas aquilo que lhes interessava – muitos somente compreenderam o conteúdo original desta forma, a partir de suas partes. Sem contar, claro, o empoderar-se enquanto ser com capacidade de escrita. Uma aluna do primeiro ano, aparentemente desanimada no início da aula, não havia entendido o conto de Clarice apenas com a primeira leitura. Mas, quando conseguiu produzir o seu próprio texto sintético a partir do conto, ela, mais do que compreender o enredo original, enxergou-se nele. Admirada, me disse no final da aula: “Professor, eu recortei bem aleatoriamente os trechos, mas quando li, o texto era sobre mim!”.

O resultado foram sínteses como estas:


- Maria Victória, aluna do nono ano & Beatriz Rodrigues, colunista da Revista Capitolina, a partir do texto Sobre ser gorda e a farsa da feminilidade


- Mateus Aranha, aluno do primeiro ano & Clarice Lispector, escritora, a partir do conto Tentação


- Anne Gabrielle, aluna do primeiro ano & Clarice Lispector, escritora, a partir do conto Tentação

A poesia e a profunda compreensão do mundo contidas nesses textos me atravessaram após o trabalho, me fizeram pedir abrigo em casa, tatear inconscientemente por algo só compreendido após indicação do texto da Márcia Tiburi. No fundo, foi a esperança, vital ao regime de pensamento democrático, o que me deixou atravessado. Sua capacidade atestada de transformação do mundo.

Mas o que me motiva a compartilhar essa experiência é o desejo de que todos saibam que esse regime de pensamento não está pronto, não é uma cartilha ou um livro didático – na minha prática em sala de aula, inclusive, percebi o quão aprisionantes são os livros didáticos. E, por não ser tão simples como seguir qualquer matriz curricular, é esperado que o modo de pensar aberto ao outro, ao diálogo, vacile, erre, pois a vacilação e o erro são típicos de qualquer processo aberto a si mesmo, honesto.

Há uma angústia e ansiedade grandes entre educadores comprometidos com uma educação libertadora em relação às metodologias testadas, à eficiência em dialogar, em atingir o outro com alguma reflexão verdadeira e despertar nele(a) inquietudes subjetivas e alguma consciência do mundo em que está. Este texto foi escrito para dizer: calma, assumir esse papel de educador também significa assumir-se educando, passível de erros, não exclusivo detentor de verdades, não exclusivo detentor de conhecimento, educar justamente significa troca. Seu saber mais o do outro formarão, enfim, o conhecimento, resultado de uma construção conjunta. Ansiedade e angústia só acontecem devido à falta de confiança que se tem em relação à existência do saber do outro. Confiar que nossos alunos e alunas têm tanto a nos oferecer quanto nós a eles(as) nos faz relaxar mais na prática educacional diária, o que alivia a pressão por eficiência tão típica do capitalismo, além de empoderá-los(as).

Não custa lembrar que essas contradições, erros e falta de segurança em relação a propostas pedagógicas emancipatórias só existem porque teimamos em pensar e praticar uma educação libertadora em um sistema que trata o aluno(a) como produto a ser escoado para o mercado. Ou seja, na maioria das vezes não são causados por problemas individuais, falta de competência do educador-educando, e sim por toda a pressão estrutural existente para que sejamos os controladores das máquinas. Resistir também envolve quedas. Conhecer-se, conhecendo o(a) outro(a), envolve vacilações. Não admitir isso é agir segundo as metas de eficiência impostas.

Este texto é para que todos e todas eduquem, e permitam-se ser educados(as), com os ombros mais relaxados, tensões mais dissipadas, silêncios mais vivos, corpos mais abertos ao que nascerá do encontro. Precisamos, enfim, saber incorporar tropeços. Utilizá-los como método.

 
Antes de acabar: saravá, Paulo Freire.


A quem interesse, o material utilizado em sala:

Tentação, Clarice Lispector.


terça-feira, 4 de agosto de 2015

Cultura demais mata o corpo da gente

“(...) tanto tesão mental espiritual moral existencial e nenhum físico, eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, éramos melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou. Cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, eu enfiava fundo o dedo na boceta noite após noite e pedia mete fundo, coração, explode junto comigo, me fode, depois virava de bruços e chorava no travesseiro, naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta.”

 
Autor: Caio Fernando Abreu
Conto: Os sobreviventes
Obra: Morangos mofados
Ano: 1982