terça-feira, 29 de novembro de 2011

O fim


José

E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, José?
E agora, você?
Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama, protesta?
E agora, José?

Está sem mulher,
Está sem discurso,
Está sem carinho,
Já não pode beber,
Já não pode fumar,
Cuspir já não pode,
A noite esfriou,
O dia não veio,
O bonde não veio,
O riso não veio
Não veio a utopia
E tudo acabou
E tudo fugiu
E tudo mofou,
E agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
Seu instante de febre,
Sua gula e jejum,
Sua biblioteca,
Sua lavra de ouro,
Seu terno de vidro,
Sua incoerência,
Seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
Quer abrir a porta,
Não existe porta;
Quer morrer no mar,
Mas o mar secou;
Quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
Se você gemesse,
 Se você tocasse
A valsa vienense,
Se você dormisse,
Se você cansasse,
Se você morresse...
Mas você não morre,
Você é duro, José!

Sozinho no escuro
Qual bicho-do-mato,
Sem teogonia,
Sem parede nua
Para se encostar,
Sem cavalo preto
Que fuja a galope,
Você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade





Josés, que essas perguntas carregadas de angústia tenham alguma certeza como resposta.

Até.
 

domingo, 27 de novembro de 2011

É desta leveza que eu estou falando

 
(Know How - Kings Of Convenience)


                Essa é a contribuição do Kings of Convenience  contra toda a melancolia presente. A suavidade e a simplicidade das vozes e da melodia talvez sejam tudo de que careço para me livrar desse peso sobre os ombros. Peso a que eu mesmo me submeti. E ainda estou submetido, esgotado. 

                 Outros versos, do Oswaldo Montenegro, agora são mantra, oração, pedido à estrela que cai:


“Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada.”

(Metade - Oswaldo Montenegro)


                Ao repeti-los espero profundamente que as águas calmas substituam a tempestade. E perdurem.

domingo, 20 de novembro de 2011

Meu querido pé anti-racista


Era uma vez um pé comum... 


... que, embalado pelo The Kooks...


... e através das mãos de verdadeiras artistas...


... transformou-se num pé anti-racista...


... porque até o meu pé entende que o racismo é uma tolice.




sábado, 19 de novembro de 2011

Pode deixar entrar.

(Quino)

Recorte: Ao sul de lugar nenhum – Charles Bukowski



“Descobri que na América e provavelmente em todos os outros lugares, tudo se resumia a ficar na fila. Fazíamos isso em toda parte. Carteira de motorista: três ou quatro filas. Hipódromo: filas. Cinema: filas. Mercado: filas. Eu odiava filas. Senti que deveria haver uma maneira de evitar as filas. Então a resposta me iluminou. Ter mais atendentes. Sim, essa era a solução. Dois atendentes para cada pessoa. Três atendentes. Deixem os atendentes fazerem fila.”

(Charles Bukowski, Ao sul de lugar nenhum, conto Dr. Nazi, página 115.)

domingo, 13 de novembro de 2011

Vontade de fugir


           “ – Minha querida filha, (...) Consultei o oráculo que, como sabes, não mente nunca e dirige toda a minha conduta. Ele me ordenou que te fizesse correr o mundo. Deves viajar. (...)

            Formosante, que jamais saíra do palácio do rei seu pai e que, (...) só havia levado uma vida muito insípida na etiqueta do fausto e na aparência dos prazeres, ficou encantada com a peregrinação que iria fazer.”
(Voltaire, A princesa de Babilônia, página 38)
               

Está decretado: a vontade de fugir é sentimento universal e constante. Agora ou na Antiguidade, aqui ou na Babilônia remota, nunca estamos completamente satisfeitos com o que temos nas mãos. Queremos mais. A isso, dá-se o nome de ambição. No entanto, eu nomeio sobrevivência.

 Cansei. 

Mas não tenho do que reclamar da vida. Possuo ótima família que me ama e entende; amigos incríveis que me ouvem e riem comigo, e choram; até, quem diria, amor. Porém esse tudo que me cabe parece pouco agora. Sinto-me preso em uma gaiola enquanto a imensidão do céu lá fora me espera. O tudo já não me basta mais. 

Assim como Formosante, a Princesa de Babilônia, que apesar de ser herdeira do maior império antigo, possuir milhares de servos e riquezas a sua disposição, ser a mais bela de todas as princesas, ter tudo de que precisa, ainda assim, falta. Não sei se essa ausência inominável será preenchida um dia, mas a busca é necessária, mais do que isso, ela é vital. 

Imagino que todos estão sujeitos a essa cócega, que vira convulsão, de mudanças. O que talvez falte à maioria é coragem de abrir novos caminhos na selva que é a vida. Mudar de emprego, conhecer pessoas novas, relacionar-se com novos possíveis amores, constituir família, abandonar o casamento falido, mudar de cidade, iniciar a faculdade, viajar. 

A estagnação e o conformismo me causam medo e são também formas de morrer. Mudar é renovar o viver, que já anda tão cansado.  

Assisti a um filme, Um lugar qualquer (2010), que contava a história de Johnny Marco, ator de Hollywood, rico, bem sucedido profissionalmente, mas vazio. O filme é arrastado como a própria vida do protagonista, que quando não trabalha volta para casa, sozinho, onde fuma, bebe, faz sexo, dorme e só. Durante todo o filme espera-se que algo aconteça, mas não acontece, porque também falta algo para o Johnny. Ao final, ele abandona o seu carro de luxo e foge. O sorriso no canto dos lábios que vemos é de alívio e liberdade. 

                                (Um lugar qualquer, Sofia Coppola, 2010)


Não tenho uma Ferrari para abandonar, mas também preciso desse mesmo sorriso. Não abandonar e esquecer – quero conservar tudo até aqui – mas renovar o oxigênio, os abraços, os motivos do choro. Conhecer, quem sabe, o Vilarejo da Marisa Monte, “onde areja um vento bom”, “o mundo tem razão” e o tempo pode esperar. 

                                          (Vilarejo - Marisa Monte)

Por enquanto, estou como O elefante drummondiano, que procura um mundo novo e está “faminto de seres e situações patéticas”. O elefante nada encontra, além de hostilidade. Mas continuará a procurar. Eu e o meu elefante continuaremos. 


O elefante

Fabrico um elefante
De meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
Tirado a velhos móveis
Talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
De paina, de doçura.
A cola vai fixar
Suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
É a parte mais feliz
De sua arquitetura.
Mas há também as presas,
Dessa matéria pura
Que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
A espojar-se nos circos
Sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
Onde se deposita
A parte do elefante
Mais fluida e permanente,
Alheia a toda fraude.

Eis meu pobre elefante
Pronto para sair
À procura de amigos
Num mundo enfastiado
Que já não crê nos bichos
E duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
E frágil, que se abana
E move lentamente
A pele costurada
Onde há flores de pano
E nuvens, alusões
A um mundo mais poético
Onde o amor reagrupa
As formas naturais.

Vai meu elefante
Pela rua povoada,
Mas não o querem ver
Nem mesmo para rir
Da cauda que ameaça
Deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
As pernas não ajudem
E seu ventre balofo
Se arrisque a desabar
Ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
Sua mínima vida,
E não há na cidade
Alma que se disponha
A recolher em si
Desse corpo sensível
A fugitiva imagem,
O passo desastrado
Mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
E situações patéticas,
De encontros ao luar
No mais profundo oceano,
Sob a raiz das árvores
Ou no seio das conchas,
De luzes que não cegam
E brilham através
Dos troncos mais espessos,
Esse passo que vai
Sem esmagar as plantas
No campo de batalha,
À procura de sítios,
Segredos, episódios
Não contados em livros,
De que apenas o vento,
As folhas, a formiga
Reconhecem o talhe,
Mas que os homens ignoram,
Pois só ousam mostrar-se
Sob a paz das cortinas
À pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
Volta meu elefante,
Mas volta fatigado,
As patas vacilantes
Se desmancham no pó.
Ele não encontrou
O de que carecia,
O de que carecemos,
Eu e meu elefante,
Em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel.
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia,
De pluma, de algodão
Jorra sobre o tapete,
Qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

Carlos Drummond de Andrade