domingo, 13 de junho de 2021

Notas de leitura: “Orgulho e preconceito”, Jane Austen

 



A indicação derradeira para que, enfim, eu decidisse por começar a ler "Orgulho e preconceito" veio de Virginia Woolf. No ensaio "Jane Austen", a autora tece uma análise muito sensível sobre uma possível mudança de estilo em curso no último romance de Jane, processo interrompido por sua morte precoce, aos 42 anos, quando "ainda estava sujeita àquelas mudanças que não raro tornam o período final da carreira de um escritor o mais interessante de todos". Não bastasse essa especulação crítica e sensível, ao final do ensaio Woolf reverencia Austen com um superlativo: "a mais perfeita artista entre as mulheres". Foi decisivo.

Retirei o livro da estante e passei ainda algumas semanas passeando com ele pela casa, sem ainda o ler: do quarto para a sala, do sofá para a cama. Abria-o em sua primeira página, mas interrompia a leitura ao fim da primeira frase, por sinal muito instigante: "É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa". Fechava o livro. Não sabia o que esperar do resto.

Hoje, superado esse cortejo inicial, esse contínuo vislumbre pela fresta, tendo avançado um pouco mais na leitura, percebo com espanto como essa primeira frase transformou-se em outra, igualmente instigante, mas diametralmente oposta: "Eu queria saber quem descobriu a eficácia que tem a poesia de afugentar o amor". Romance é um gênero que nos põe para observar esses movimentos lentos. "Orgulho e preconceito" tem sido uma boa companhia nestes dias quentes. Nem sofá, nem cama: tenho lido deitado no chão, sobre o tapete.


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Jane Austen constrói um mundo para o amor.

Constrói um mundo, com seus costumes, ritos sociais, regras de conduta, valores, julgamentos de caráter, expectativas, geografia, distâncias, vestimentas, ritmo, para abrigar um tipo de amor que nada tem de extraordinário, exceto sua paciência. “O amor não precisa ser físico”, me disse uma aluna de 15 anos ao definir esse sentimento entre Elizabeth e Darcy, que começa desde etapas avessas ao próprio amor: a indiferença, a repugnância, o desprezo, a raiva, o orgulho e o preconceito. O enredo lento que vai transformando pouco a pouco essas emoções iniciais em admiração, gratidão e respeito exige do leitor a mesma paciência.

Nesse sentido, trata-se também de um romance sobre o tempo. O tempo do casal protagonista, que demora a se reconhecer como tal. O tempo também de uma sociedade inglesa do final do século XVIII, rural, tradicional, patriarcal, de valores aristocratas e burgueses. Um ano precisou decorrer, e 400 páginas de romance, para que Elizabeth enfim confessasse pela primeira vez a seu pai, referindo-se a Darcy: “Eu o amo”. Não houvera contato físico íntimo entre os dois, apenas meneios de cabeça, rubores, caminhadas por bosques, olhares entrecruzados na mesa de jantar, diálogos afiados, no máximo duas danças compartilhadas num baile. A dimensão do corpo quase nunca é notada. Muitas vezes há apenas o silêncio tenso, desejante, de duas pessoas que se esperam; ou a distância entre suas residências, entre suas classes; ou a caligrafia de suas cartas.

Muitos aspectos me impressionam na escrita de Jane Austen: a enorme vivacidade do caráter dos seus personagens, que possuem personalidades tão precisamente construídas que se torna impossível duvidar das suas escolhas, falas, da sua presença viva; também a modernidade da sua construção narrativa: tudo na linguagem é muito ágil, preciso, claro, e de modo algum a autora se perde em descrições enfadonhas, em um acento exagerado ou aguado; mas principalmente me impressiona a sua contenção em represar o amor ao longo de todo o livro, em ir sugerindo-o através de pequenos detalhes, de gestos, olhares, sobretudo me impressiona a sua capacidade de confundi-lo, de nos fazer esquecê-lo na maior parte do tempo, para só revelá-lo plenamente ao final, nos últimos capítulos. A mesma contenção dos seus personagens é a contenção utilizada pela autora para contar sua história. Assim, também é exigido que o leitor se contenha diante dessa história de amor, que tenha calma, que se acerque do próprio desejo, que o limite, que o observe com cuidado e à distância. 


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