domingo, 6 de julho de 2014

“Vi na televisão paisagem do Nordeste. Lá o Brasil tem história, vira país antigo. Moramos no lugar mais bobinho de Minas, nunca acharam uma cerâmica, um ferro de senzala nesta minha cidade. Cheira a Deus a velhice dos recém-nascidos, cheiram a sarcófago, a eternidade, os adoráveis nenéns. A matéria é eterna? Ser é tão absurdo quanto não ser. Graça passa mal quando pensa em infinito. Diante de mistério tão avassalador, não sei onde pendurar este casículo. Abel me contou que estava atravessando o pontilhão da mina e cruzou com o Pardal que lhe implorou: oi, oi, deixa eu passar a mão no seu pinto, oi, oi, deixa, deixa, só um pouquinho, oi. Isto aconteceu e não pode ficar sobrando na história das civilizações, senão a engrenagem enguiça, o eixo da terra se inclina e o sentido último de tudo – o que interessa – se perde e aí, oi, oi, loucura, danação eterna, sofrimento inenarrável, palavra que meu pai adoraria, como adorava inabalável. Mudava-lhe o semblante. Meus exames estão ótimos. Estou disposta para um monte de coisas, escrever o que me cair da telha, trabalhar na catequese, viajar o Nordeste – projeto mais remoto por causa do avião –, ao norte de Minas, a lugares antigos, escrever um auto onde precisarei de luzes vermelhas e comprar uma coisa de ouro para mim. É preciso dar graças. Os pobres? Sou eu.”


(Adélia Prado, em Quero minha mãe, 2005)

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