domingo, 27 de julho de 2014

Reencontrar Clarice

Gastei um dia inteiro para ler um conto de Clarice. Tive que sorvê-lo por partes. Bastam-me algumas páginas e estou abatido. Abatido como numa guerra, ou feito carne. É de carne que me faço. Carne e espírito. Clarice desvenda os dois, por isso o domingo inteiro para lhe ler um único conto dividido, por mim, em três partes. Preciso de tempo para respirar, ir a outros lugares. Clarice me sufoca com seus dedos duros e rijos. Sufoca minha palavra na garganta e só o que me resta é esperar o conto terminar para que eu a pronuncie. Minha palavra é um gemido perplexo de ah, clarice.  Quem desvendará o seu espírito e a sua carne?

O conto: Os desastres de Sofia.
O livro: A Legião Estrangeira (1964).
A autora: Clarice.

“De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto – uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.”


Em tempo: assim como este conto é dos melhores, esta entrevista também ocupa os mesmos patamares:


Um comentário:

  1. Eu tenho uma relação mó curiosa com a Clarice: durante anos e anos vários amigos meus insistiram para que eu lesse alguma coisa dela, presentearam-me com livros ao longo dos meus aniversários e etc. Mas eu nunca li, "minhas Clarices" ficavam sempre paradas na estante. Sei lá por quê. Até que um dia eu topei com a biografia dela numa livraria e comprei. Um calhamaço de 748 páginas sobre a Clarice, dos nascimentos às mortes (porque Clarice nasceu e morreu um bocado de vezes). Me impactou bastante a vida dessa mulher que se dizia metade bicho.

    Mas eu ainda não li nenhum livro dela. Bobagem minha, né? Eu juro que leio um dia.

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