domingo, 14 de dezembro de 2014

Dois leões representados num quadro

Dois leões representados num quadro, ambos olhando para o lado direito, lado a lado, grandes jubas, grandes olhares, grandes variações de amarelo. Eu escrevia sobre eles. Escrevia um conto sobre leões a partir deste quadro. No primeiro parágrafo, justificava a razão da escrita, mas depois, pensei em apagá-lo. Ninguém precisa saber as razões da escrita. Aparentemente, os leões eram irmãos e um confessou ao outro sua homoafetividade. O leão gay era o mais velho. O leão mais novo não se importou com a revelação do irmão apreensivo, continuou vivendo naturalmente, vida de bicho. Mas o leão gay ainda guardava algum constrangimento em relação ao outro, constrangimento sem qualquer fundamento nos fatos, já que a reação fora boa, natural, como reagem os animais a fatos esperados, mesmo que inesperados, pouco importantes. O leão mais velho permanece apreensivo. Apreensão transcende os fatos.

O conto se estendia, ficava cada vez melhor, e o que era apenas a descrição de uma pintura tornava-se, a cada palavra a mais, conto para livro. Livro que não acaba. Livro que não virá. No quadro, agora, não havia dois leões, apenas um, de boca aberta, como em grito, ou em fala. Escrevo sobre os limites da boca. Até certo ponto, ainda podem-se ver os dentes; deste ponto em diante, só escuridão, o breu da boca, o abismo da boca, trevas, goela, ou não: fronteira.

C. está na praia, também de lado, olhando o mar, sentado na areia, sem camisa. Não estou com ele, mas posso vê-lo: meu olhar é como câmera que foca em C., foca em mar, movimento das ondas. Ele está em paz, tão calmo, um tanto desiludo, olhando para o mundo. Estamos no último dia do ano. Meu olhar-câmera foca cada vez mais somente em C. num zoom lento. Tudo está acinzentado. Sua posição me faz lembrar a dos leões no primeiro quadro. Sem me ver, C. gira seu corpo, fica em frente a mim, eu que olho menos para o mar, menos para mar. De frente, percebo que C. está nu e conversa com seu grande pênis mole. Diz algo como, todo ano peço esperançoso anel e tudo o que tenho, ano após ano é esta praia, só, o que explica sua aparente desilusão. O moço começa então a listar os pedidos para o próximo ano e, dentre os desejos, pede mais uma vez anel e também que o seu pênis continue crescendo dois centímetros de diâmetro como em todos os anos. C. possui metas. Meu olhar se aproxima totalmente e tudo o que preenche minhas lentes, meu quadro, é o seu corpo, corpo branco, quase rosado, gordo, com alguns pelos ao redor dos mamilos e na linha vertical na direção do umbigo, caminho da perdição, caminho da felicidade.

Oito páginas de conto. Termino.

Fim de tarde, monto na bicicleta e vou até a cidade a vinte minutos da minha, onde mora o senhor que me conta todas essas histórias que escrevo. Ele é a fonte do texto. Não é o quadro. Não sou eu. É este senhor agricultor que mora na zona rural da cidade a vinte minutos da minha. Fim de tarde. Chego, sento-me, mesa de madeira, para ouvir o senhor negro, chapéu protegendo-o do sol, contar-me histórias. Percebo que a história dos leões nunca existiu escrita, está ali na boca do velho contando. Lamento pelo material escrito perdido, como os pais lamentam pelos filhos que desaparecem. Ainda me lembro do limite da boca, da praia acinzentada, da conversa com o pênis que cresce, todo ano, dois centímetros. E só. Boas imagens na prosa esticada do velho. Nada está salvo, travessias: sonho, oralidade, escrita. 

2 comentários:

  1. http://feitopus.tumblr.com/post/106188439453/sao-estudos-para-dois-leoes-representados-num

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  2. David, só te agradeço. Lindo demais o estudo! ;)

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