domingo, 14 de dezembro de 2014

“ – Escuta: pois é, não sei se te contei que o teatro que estou a escrever é o teatro que consagrará as aparições, é o que tenho denominado para consumo interno de Teatro da Aparição, melhor assim, pois basta de personagens de  carne e osso que vêm de algum lugar e partem para outro, não, não, a partir de agora de repente irrompem do nada e de súbito desaparecem para o nada, como verdadeiras assombrações são transplantados vamos dizer do esquecimento para o olvido, ninguém espera o surgimento nem o apagamento deles; estamos todos nós cansados da previsão de tudo, pega um jornal, televisão, nos despejam previsões de chuva sol frio calor nuvens esparsas tempo coberto terremotos tufões safra de arroz para esse ano, basta, basta, mas não, ainda vem o time que deverá vencer o jogo de amanhã o meteorito que cairá sobre nossas cabeças deus seja louvado não aguento mais, só o Teatro da Aparição poderá nos salvar é mesmo no meio dessa história toda, o espectador aqui terá sua capacidade de previsão amputada, o que ele vê agora é uma cena banhada numa espécie de formol que a protege do bafo das previsões cuidado com esse bafo!, pois agora teremos uma cena cujo desenvolvimento o público não terá a menor condição de adivinhar até porque ele é composto de ignorantes incultos burros broncos massa encefálica dormente crânio oco o que você quiser.

Raios me revolvam a mente me disse ele incinerando tudo o que já dissera: o que eu quero, acrescentou, e te falo isso como quem se dirige a alguém em prece: o que eu quero para esse Teatro da Aparição é que ele nem precise existir, no duro. Para quê?

Para que mais e mais maneiras de externar a mesma merda se o mundo carece não de uma linguagem mas de um fato tão ostensivo na sua crueza que nos cegue nos silencie e que nos liberte da tortura da expressão, é isso, pronto!

Ele era um rapaz que pensava estar criando a sua poética. Talvez estivesse, talvez não.”


(João Gilberto Noll, A céu aberto, Companhia das Letras, 1996)

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